O texto original, escrito por Willow Heath e publicado no site Books and Bao, gira em torno de três grandes mestres da literatura japonesa que foram agraciados com o Prêmio Nobel de Literatura.
Em 2017, o prêmio Nobel de Literatura foi recebido pelo ilustre Kazuo Ishiguro – que, embora seja cidadão britânico e escreva exclusivamente em inglês, nasceu no Japão e escreveu dois romances que se passam em seu país de origem.
Ishiguro é meu escritor favorito, e sua popularidade me inspirou a voltar no tempo e a ler outros dois autores japoneses que receberam o mesmo prêmio que ele anos atrás, Kenzaburo Oe e Yasunari Kawabata, e a resumir quais os presentes que cada um desses homens têm a entregar ao mundo da literatura.
1# KAZUO ISHIGURO (PRÊMIO: 2017)
Ao proferir seu discurso de aceitação do Prêmio Nobel, Ishiguro reflete sobre o Japão de suas memórias, um lugar que deixou aos cinco anos de idade. Ele recorda detalhes específicos de sua infância em Nagasaki e, ao fazê-lo, observa:
Enquanto eu crescia, muito antes de pensar em criar mundos fictícios em prosa, eu estava ocupado construindo em minha mente um lugar ricamente detalhado chamado Japão. Um lugar ao qual eu, de alguma forma, pertencia.
Enquanto jovem, Ishiguro foi forçado a aceitar o fato de que seu próprio Japão pessoal não era algo que ele poderia visitar no mundo real.
O Japão que existia em minha cabeça talvez sempre tenha sido uma construção emocional feita por uma criança a partir de memória, imaginação e especulação.
Essa realização o uniu às suas histórias.
O que eu estava fazendo era colocar no papel as cores especiais daquele mundo […] sua dignidade, suas falhas; tudo o que eu já havia pensado sobre o lugar antes que ele desaparecessem para sempre de minha mente.
E assim, a partir dessa necessidade de escrever sobre seu alternativo e fantástico Japão, aquele que tinha sido deixado para florescer em sua imaginação, o jovem Ishiguro escreveu dois romances: um ambientado naem sua cidade natal, Nagasaki (Uma Pálida Visão dos Montes, 1982) e o outro na capital, Tóquio (Um Artista do Mundo Flutuante, 1986).
O tema que percorre ambos os romances, bem como o terceiro de Ishiguro (Os Vestígios do Dia), é o da memória, especificamente a sua capacidade de nos trair e a nossa disposição para ignorar ou distorcê-la. A memória não é confiável e pode ser usada como uma ferramenta para mentir para os outros ou para nós mesmos.
Olhando para as memórias fantásticas de Ishiguro sobre o Japão em contraste com o Japão real, que continuou a existir sem sua presença, é fácil entender por que ele dá tanta atenção ao poder da memória.
Ishiguro conseguiu construir sua carreira como um genial artesão das palavras e contador de histórias em torno dessa ideia do imponente poder da memória pessoal versus a história real.
Em Uma Pálida Visão dos Montes, temos nossa protagonista, Etsuko, agora uma mulher idosa que vive sozinha na zona rural da Inglaterra. Sua filha mais nova, Niki, vem visitá-la após o suicídio da irmã mais velha de Niki, Keiko.
Isso dá início a uma dolorosa jornada de recordações, enquanto Etsuko passeia pelas memórias de sua vida passada em Nagasaki e sua amizade com a evasiva e irresponsável Sachiko.
Paralelos são logo traçados entre essas duas mães, e o relacionamento de Etsuko com a filha e suas próprias memórias continua a se tornar frágil e tenso.
O segundo romance de Ishiguro, e meu favorito pessoal (assim como o de vários fãs e críticos), é Um Artista do Mundo Flutuante.
Ambientado em Tóquio durante o final da Segunda Guerra Mundial, a história acompanha nosso narrador, o outrora famoso pintor de ukiyo-e [nota da tradutora: gênero de xilogravura e pintura japonês] Masuji Ono, enquanto este lida com os preparativos para o casamento de sua filha mais nova.
À medida que os arranjos progridem, Ono é forçado a enfrentar seu passado e a relação entre sua arte, sua política e o papel do Japão na Segunda Grande Guerra.
O personagem de Ono é absolutamente um dos mais sutilmente complexos encontrados na literatura moderna. Um pai que começa sua narrativa estoico e seguro de si, sua expressão começa a desmoronar com o tempo, e sua maneira de enxergar o mundo e seu lugar nele é questionada repetidas vezes.
Leituras repetidas dessa bela obra-prima revelam camadas cada vez mais profundas do caráter de Ono. Um Artista do Mundo Flutuante é uma obra-prima incontestável da ficção literária e razão suficiente para ser agraciado com um Prêmio Nobel.
2# KENZABURO OE (PRÊMIO: 1994)
Dos três vencedores, escolhi dar a Oe o título de O Rebelde, porque, como a The Paris Review colocou:
Em 1994, Oe aceitou o Prêmio Nobel de Literatura, mas recusou a mais alta honra artística do Japão, a Ordem da Cultura, devido aos seus laços com o passado de veneração ao imperador de seu país. A decisão o tornou uma figura de grande controvérsia nacional, posição que ele frequentemente ocupou ao longo de sua vida como escritor […] Ele permaneceu nos holofotes políticos desde então e considera seu ativismo tão importante em sua vida quanto a literatura.
Na mesma entrevista para a The Paris Review, Oe resumiu suas próprias crenças políticas em uma frase simples e bela:
Em princípio, sou um anarquista. Kurt Vonnegut uma vez disse que era um agnóstico que respeita Jesus Cristo. Eu sou um anarquista que ama a democracia.
Assim como Ishiguro, a escrita de Oe nasce de suas interações com seu próprio Japão, mas enquanto o Japão de Ishiguro é de certa forma fantasioso, o de Oe é marcado por agitação política, luta social e a busca por mudança.
Nascido em 1935, Oe viveu durante a Segunda Guerra Mundial e presenciou a devastação e as consequências dos bombardeios nucleares em Hiroshima e Nagasaki.
Isso, claro, teve um impacto profundo e duradouro em sua escrita. Notavelmente, seu longo ensaio Hiroshima Notes (1965), que descreve os pensamentos e as vidas das vítimas dessas tragédias.
Possivelmente a obra mais famosa de Oe até o momento, O Grito Silencioso (conhecido em japonês como 万延元年のフットボール; Man’en Gannen no Futtoboru, literalmente ‘Futebol no Primeiro Ano de Man’en’) conta a história de dois irmãos, o narrador e acadêmico introvertido Mitsusaburo, e seu irmão mais novo quase excêntrico, Takashi, que acaba de retornar a Tóquio vindo de Nova York.
Após Mitsu e sua esposa tomarem a decisão de deixar seu filho recém-nascido e portador de deficiência em um asilo, e enquanto ele luta para assimilar o suicídio de um amigo (de uma forma particularmente e estranhamente erótica), ele e seu irmão Takashi retornam à aldeia de sua juventude para fazer negócios e batalhar contra um imigrante coreano que se transformou em CEO, conhecido como ‘o Imperador dos Supermercados’, que deseja expandir seu império.
Em seu aspecto mais filosófico, O Grito Silencioso é uma análise da ruína que o Japão moderno/urbano e antigo/rural experimentou, tanto por sua própria mão quanto pela influência ocidental. Conforme observado pelo Japan Times sobre o romance:
O Japão metropolitano é egoísta e violento, dilacerado por distúrbios, enquanto o Japão rural está se desintegrando, povoado por figuras excêntricas como Jin, “a mulher mais gorda do Japão”, e Gii, um ermitão que se esquiva do recrutamento militar.
O Grito Silencioso é um romance raro, do tipo que, por si só, poderia justamente render ao seu autor um Prêmio Nobel, e é um ponto de partida perfeito para iniciar sua jornada pelas obras e filosofias de Kenzaburo Oe.
3# YASUNARI KAWABATA (PRÊMIO: 1968)
O que define a escrita do primeiro vencedor japonês do Prêmio Nobel é sua habilidade de capturar uma cena ou um momento. Semelhante ao estilo e propósito dos poetas de haikai, Kawabata é capaz de dar vida à natureza, ao clima, ao cenário e ao humor de uma forma muito tangível e densa.
Suas palavras carregam peso, mas também fluem e esvoaçam brincalhonas. Ele tem uma simplicidade em sua escrita, mas uma densidade em seu tom. Unir todos esses sentimentos divergentes de maneira tão descomplicada é o motivo pelo qual ele foi nomeado Nobel.
Nascido em Osaka em 1899, Kawabata era muito mais tradicionalmente japonês do que Oe e Ishiguro, e grande parte de sua escrita gira em torno dos temas da morte e da solidão, bem como envolve uma discussão frequente sobre a relação entre o Japão e a influência que o Ocidente teve em sua terra natal.
O romance mais famoso de Kawabata, O País das Neves (1948), ficou famoso por ter levado 12 anos para ser concluído, e conta a história de uma gueixa solitária que vive em uma cidade isolada de onsen (termas) e seu caso de amor com um homem de Tóquio.
Conforme expresso na Enciclopédia Britannica, em seu discurso de aceitação do Prêmio Nobel, Kawabata disse que, por meio de sua escrita, ele tentou embelezar a morte e buscar harmonia entre o homem, a natureza e o vazio.
E conseguiu.