Se existe um plot twist literário que eu amo, é o seguinte: após acompanharmos uma boa parte da história seguindo o ponto de vista do narrador, vendo as coisas segundo a sua perspectiva e acreditando na sua palavra, descobrimos que, bem, esse mesmo narrador é o assassino. Ou, caso não seja exatamente um assassino, é o responsável pelos crimes que permeiam a narrativa.
Como descrever a sensação que nos toma quando descobrimos que tudo o que acreditamos até então era, na verdade, uma farsa, e que estávamos sendo enganados por aquele que forjou a narrativa milimetricamente para nos enganar? É quase que a sensação de ser feito de trouxa, só que de um jeito bom. Sinceramente, não sei de que outro modo defini-la.
Portanto, tendo em base isso, reunimos nesse texto os melhores livros nos quais esse twist se encontra presente, todos devidamente lidos e aprovados por nós. Lembrando, é claro, que a lista está repleta de spoilers, inevitáveis em um caso como esse.
Nada no mundo do crime jamais se comparou e jamais se comparará a Agatha Christie, cuja obra monumental lhe rendeu o apelido de Rainha do Crime. A escritora britânica P.D. James, que também se destacou na literatura policial de seu país, escreveu a respeito de Christie que, “com outros escritores, podemos ter uma razoável confiança de que o assassino não será um dos jovens enamorados, um policial, uma criada ou uma criança, mas com Agatha Christie não há prediletos nem entre assassinos, nem entre vítimas. Como na vida, a única certeza em sua obra é a morte”.
Optamos por começar essa lista com um de seus romances, Noite Sem Fim. Nele, que se inicia com uma de minhas poesias favoritas (Augúrios da Inocência, de William Blake), temos Michael Rogers, o narrador, um jovem trambiqueiro aparentemente de bom coração que se apaixona por uma herdeira americana, Ellie Guteman, e a desposa. Os dois adquirem uma propriedade no interior da Inglaterra e se dedicam a construir a sua casa dos sonhos, ignorando os avisos de uma cigana de região que alega que o lugar está amaldiçoado. As coisas pioram na ocasião em que Greta, amiga de Ellie, vai viver com eles por algum tempo para auxiliá-la em questões práticas, uma vez que Michael e Greta parecem nutrir uma certa inimizade um pelo outro.
… Até que Ellie morre em circunstâncias misteriosas.
E é apenas perto do fim que começamos a perceber que a fachada amigável de Michael pode ser uma farsa, tal como a sua aparenta rivalidade com Greta, e que essa história de “Cinderela às avessas” encobre um segredo muito mais profundo do que teríamos imaginado”.
Recentemente, em especial depois do sucesso da série The Haunting of Hill House, baseada em um de seus livros, a escritora americana Shirley Jackson ganhou fama no Brasil. E, é evidente, vários de seus livros foram traduzidos para o nosso idioma. Ganho nosso.
Um deles é Sempre Vivemos no Castelo.
Breve, mas eletrizante, o livro conta com a narração de Merricat Blackwood, uma adolescente excêntrica com gostos bastante peculiares – “Costumo pensar que, caso tivesse sorte, poderia ter nascido um lobisomem, pois meus dedos do meio possuem o mesmo comprimento, mas é preciso me contentar com o que eu tenho. Não gosto de me lavar, nem de cachorros, nem de ruídos. Gosto de minha irmã Constance, e de Ricardo Plantageneta, e de Amanita phalloides, os cogumelos venenosos” – e uma reputação de ser estranha e antissocial.
Além da personalidade bastante peculiar da personagem, essa reputação é sustentada por um fato trágico: toda a sua família foi envenenada há seis anos, depois de terem comido amoras batizadas com açúcar repleto de arsênico no jantar. As únicas exceções, além de Merricat em si, foram as seguintes: um de seus tios, que sobreviveu à intoxicação, e sua querida irmã mais velha, Constance, que não tinha o costume de colocar açúcar em suas amoras. Os três vivem juntos trancaficados no castelo da família, saindo somente quando muito necessário.
A vida de Constance é ainda mais complicada do que a de Merricat, uma vez que a vizinhança inteira acredita que ela assassinou toda a família, crime pelo qual chegou a ser acusada, porém rapidamente absolvida – absolvição esta, é claro, que não restaurou a sua reputação, e muito menos o terror que os habitantes da cidade por ela nutrem.
Mas, com a chegada de um primo distante e interesseiro, Charles, que arrisca atrapalhar essa frágil harmonia familiar e desperta o ódio imediato de Merricat, nós leitores descobrimos por fim a verdade por trás dos assassinatos passados. E quem poderá dizer que, revelando ainda nas primeiras linhas do romance ser fã do rei mais sanguinário da história da Inglaterra e das tais Amanita phalloides, Merricat já não havia deixado tudo bastante claro.
Poucos livros que li esse ano foram capazes de me entreter, de me manter em estado de alerta e de partir o meu coração com tanta potência quanto A Maldição do Mar, da autora americana Shea Ernshaw – que, em seu perfil na rede social de leitura Goodreads, diz amar “as histórias de terror, as florestas sombrias e a meia-noite nos lagos”, o que não é de se surpreender, uma vez que todos esses temas em seu livro.
… Se, é claro, você trocar lagos por mar, como o título do livro deixa bem claro.
O enredo desse livro gira em torno de uma pequena cidade turística no litoral americano que sofre de uma maldição aterrorizante: a cada ano, à meia-noite do solstício de verão, três entre as jovens locais são possuídas pelas almas de três belíssimas irmãs que foram condenadas ao afogamento sob a falsa acusação de bruxaria há muitos séculos. Durante três semanas, essas irmãs, utilizando-se do corpo dessas três locais escolhidas, seduzem um número aleatório de rapazes da cidade e os levam até o mar, onde executam a sua vingança, afogando-os – como foram elas mesmas afogadas – e roubando a sua alma.
A história é narrada pela local Penny Talbot, habitante de uma ilha nas cercanias da cidade e principal responsável pelo bem-estar da mãe, uma mulher com habilidades psíquicas que foi levada à loucura pelo desaparecimento do marido no mar.
Com a chegada do forasteiro Bo Carter, Penny se apaixona perdidamente e percebe o quanto é perigoso o amor: ele faz com que tenhamos algo a perder. Ou a proteger.
Tendo um relacionamento de amor e ódio com o local amaldiçoado onde vive – “Às vezes, eu acho que esse ilha é um ímã para as coisas ruins, o centro de todas elas. Como se ela fosse um buraco negro que nos arrasta a um destino que não podemos controlar. Mas há também momentos nos quais penso nela como uma das únicas coisas que me mantém sã, como sendo a única coisa familiar que me restou” –, Penny busca proteger Bo do destino cruel que pode aguardá-lo, ao mesmo tempo em que procura desesperadamente mantê-lo à parte do segredo que oculta dentro de si, a ponto de levar o leitor a perguntar… A história está sendo narrada pela verdadeira Penny?
Tendo sido o livro que lançou a escritora americana Gillian Flynn ao estrelato, é praticamente uma unanimidade que Garota Exemplar é também o mais alto marco de sua excelente obra, e um livro altamente inteligente que lança uma nova luz a um tema que foi explorado repetidas vezes, mas que continua a nos encantar e comportar novas perspectivas: um relacionamento amoroso em decomposição.
Ambientado no subúrbio americano – o que o crítico David Schmid diz ser uma jogada bem inteligente, uma vez que, em suas palavras, “existiria um lugar melhor para apresentar a raiva, o amargor e o ódio mútuo do que em um espaço tradicionalmente ocupado por pessoas que conquistaram o famoso sonho americano?” –, Garota Exemplar trata do desaparecimento de Amy Dunne.
Os eventos que conduziram a esse sumiço são narrados tanto por Nick Dunne, o seu marido e principal suspeito, quanto pela própria Amy, em um diário deixado para trás.
… Até que descobrimos que Nick a traia. Que Nick deixara de amá-la. E que Amy, enfurecida e sentindo-se humilhada, forjou o próprio desaparecimento a fim de incriminá-lo. E o fez de modo bastante inteligente, como ela mesma deixa claro: “Sempre achei que eu seria capaz de cometer o assassinato perfeito. As pessoas que são pegas são pegas porque não têm paciência; elas se recusam a planejar”.
Em seu plano de vingança, Amy comete vários outros crimes – assassinato, fraude criminosa, e assim por diante –, para então perceber que, bem, talvez ela possa voltar para o marido, pois “ninguém pode estar tão apaixonado quanto estávamos e isso não invadir sua medula óssea. O nosso tipo de amor pode apresentar remissão, porém está sempre esperando para voltar”.
Voltamos a Agatha Christie, a nossa Rainha do Crime, mas dessa vez com uma de suas obras-primas – e, diga-se de passagem, um dos livros mais inovadores de todos os tempos –, escrito mais de trinta anos antes de Noite Sem Fim: O Assassinato de Roger Ackroyd, de 1926.
O livro gira em torno de um evento que choca o vilarejo fictício King’s Abbot: a morte Mrs. Ferrars, uma viúva, através de uma overdose de veronal. Vinte e quatro horas depois, Roger Ackroyd, o homem com quem pretendia casar-se, aparece assassinado, um caso que aparenta envolver ganância e chantagem. O fato é que diversas pessoas poderiam desejar vê-lo morto, desde seus desafetos até seus herdeiros. E cabe a Hercule Poirot desvendar o mistério de sua morte.
Em O Assassinato de Roger Ackroyd, Christie fez algo que nenhum escritor policial fizera antes: utilizou-se de um narrador aparentemente confiável, no caso um médico interiorano de ótima reputação e alta popularidade, colocou-o em uma posição privilegiada em relação ao detetive, de uma consideração que se aproximava da amizade, e nos capítulos finais revelou que, bem, fomos enganados o tempo todo.
E, como colocou P.D. James, “ela enganou os leitores de maneira audaciosa em O Assassinato de Roger Ackroyd, em que o narrador se revela o assassino, um engenhoso e defensável desafio a todas as regras convencionais da ficção de mistério”.
Por que essa decisão ousada seria tão, como dissemos, inovadora?
A resposta é simples. Quando ouvimos toda a narrativa através do ponto de vista de alguém, tendemos naturalmente a confiar em sua palavra. Ao final do romance é comum chocarmo-nos ao descobrir que a nossa confiança foi traída pelo narrador. Esse choque, que ocorre em momentos nos quais a distância segura entre o criminoso e o leitor entra em colapso, iniciou-se com Christie. E palmas para ela por ter inaugurado uma tendência que, quando colocada em prática com inteligência, se configura como uma legítima iguaria literária.
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