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As diferenças entre Beatles e Stones

Duas notícias se entrecruzaram na minha cabeça nos últimos dias.

A primeira foi a da reação de Carla Bruni ao ser perguntada sobre o escândalo do financiamento ilegal da campanha de seu marido, Nicolas Sarkozy, em 2007. A ex-modelo recomendou ao repórter que perguntasse diretamente a ele o que queria saber, e em seguida, sem cerimônia, retirou-se da sala, encerrando a entrevista.

A segunda foi a de que os Rolling Stones retornarão ao Hyde Park no próximo dia 6 de julho para a primeira de duas apresentações, 44 anos após o lendário show realizado dois dias após a morte de Brian Jones. Os 65 mil ingressos postos à venda se esgotaram em menos de cinco minutos.

Explico a relação aparentemente inusitada. Lembrei-me que Mick Jagger, com 47 anos, prestes a se casar com Jerry Hall, pegou Carla Bruni, que tinha 23 anos à época – e era namorada de Eric Clapton. Este, conhecedor da fama de de Jagger, chegou a implorar: “Por favor, Mick, ela não. Acho que estou apaixonado.” Não adiantou nada.

E aí? O Mr. Jagger é ou não é “Sua Satânica Majestade”?

Essa inconsequência quase infantil me fez refletir sobre o impacto cultural que os Rolling Stones tiveram ao longo da segunda metade do século XX. E como este impacto foi impulsionado, de certa forma, pelo duelo conceitual com os Beatles.

Eram pulsões distintas. Os Stones, dionisíacos, inebriantes, sensuais; os Beatles, puritanos, bons moços, apolíneos. Pólos magnéticos opostos. E, embora tivessem uma relação amistosa, qualquer um que os escute até hoje sabe que são como água e óleo.

Os Beatles soam como a esposa amorosa, a eterna companheira. Os Stones são a amante voluptuosa, destruidora de lares, que faz questão de transar na cama que você divide com a esposa.

Não sei se tinham muita consciência do que faziam na agitação da época, ou se eram levados pelos fatos, os ódios, a inveja, mas essas bandas personificaram o duelo que se trava nas profundezas da alma humana.

Quem pode ignorar a redenção que se esconde por trás de “Hey Jude”? Quando Paul McCartney introduz as primeiras palavras da canção, acompanhado do piano, é Deus falando. A música para diluir todas as angústias: “The movement you need is on your shoulders.”

Os Stones, por outro lado, não só respondiam a esta doçura invocando o demônio, como não deixavam espaço para o amor cristalino nas suas canções. Mas como conceber essa manifestação do amor em meio à orgia que cercou a gravação das músicas de Exile on Main Street?

Os Beatles eram do bem. Odiavam-se, é verdade. Mas não se pode culpá-los. Só quem tocou numa banda de rock sabe como é comum querer degolar seus companheiros em todos os ensaios. E, no entanto, sentir uma saudade de doer o peito quando tudo acaba.

Os Beatles eram a luz. Gritaram para todos escutarem no seu canto angelical: “E no final, o amor que você leva é igual ao amor que você cria.” Ao que os Stones, num lampejo de danação respondiam: “Todas vocês,  mulheres, são jogadoras baratas, chifrando como não sei o quê.”

Não há como negar, os Beatles foram uma boa transa. Mas apenas o papai-mamãe. Os Rolling Stones foram uma dominação de quatro.

No entanto…

Numa dessas ironias da vida, o destino inverteu os desfechos. Os Beatles se separaram, seus componentes acanalharam o final da jornada e as casualidades trataram de fazer o resto do trabalho com as mortes de Lennon e George. Talvez em recompensa pelo “bom mocismo”, aos Beatles, como banda, foram reservadas as bençãos de uma breve existência, e de passar para a história com a imagem da eterna juventude. Cumpria-se assim o dogma proferido por Neil Young: “É melhor ser consumido pelas chamas do que esmaecer aos poucos.”

Os Stones, no entanto, têm que queimar no inferno da continuidade. Reprisar os retornos. Têm que envelhecer nos palcos, arremedando, quatro décadas depois, um evento histórico que foi gratuito, cobrando agora entre 110 e 352 euros e reduzindo drasticamente a lotação. Lembram-nos o insípido dessa nossa época e, sobretudo, o fato de que não apareceu até hoje ninguém tão relevante para tomar para si o cetro satânico do rock.

Os Stones retornam para a miniturnê 50 and Counting, e apesar de fã da banda, espero que seja pela última vez. Não sei se é a idade, mas na minha perspectiva o rock foi feito para ser breve, explosivo, simples e visceral. Em nome dessa simplicidade, a vida de uma banda tem que ser curta.

Ironicamente, o próprio Jagger e seus companheiros sempre souberam disso. Sem cerimônia, decifravam há muito tempo o enigma da esfinge do rock quando cantavam: “It’s only rock and roll, but I like it.”

Eles estão queimando no inferno da continuidade
Hugo Gusmão
Hugo Gusmão
Hugo César Araújo de Gusmão é fotógrafo amador e leitor profissional, sobretudo de sci-fi. Atualmente mora em Granada, na Espanha, onde faz um pós-doutorado em Direito Constitucional.