O seguinte texto, sobre intrínseca conexão entre o medo e a esperança segundo René Descartes, foi publicado originalmente no site The Marginalian é e da autoria de Maria Popova.
Usamos a tradução da editora LeBooks nos trechos que citam diretamente as falas do filósofo francês.
A esperança — uma faculdade decididamente diferente e muito mais robusta do que o otimismo — permanece como nosso mais potente antídoto contra a passividade e resignação do cinismo. O filósofo e psicanalista Erich From, que viveu entre 1900 e 1980, advertiu contra a comum preguiça do otimismo e do pessimismo, mas exaltou o contraponto de ambos, uma esperança ativa que nos capacita “a pensar o impensável, mas agir dentro dos limites do realisticamente possível.”
“Esperança é um presente que você não precisa renunciar, um poder que você não precisa descartar”, escreveu Rebecca Solnit duas gerações depois em seu manifesto lúcido e luminoso sobre as bases da esperança e ação em meio a tempos sombrios. O filósofo Jonathan Lear, por sua vez, denominou tais bases como “esperança radical” — o tipo de esperança que “antecipa um bem para o qual aqueles que têm esperança ainda não possuem os conceitos apropriados para compreender”. Mas tal antecipação do inimaginável está constantemente em diálogo com o desconhecido — com a temível possibilidade de não conquistar o objeto da esperança e com o potencial concomitante para o desespero.
Essa complementaridade necessária da esperança e do medo diante do desconhecido é o que o grande filósofo, cientista e matemático francês René Descartes (31 de março de 1596 – 11 de fevereiro de 1650), o padroeiro da racionalidade, explora em uma seção de As Paixões da Alma, sua última obra publicada, que nos apresentou as reflexões de Descartes sobre a cura para a indecisão e sobre os meios de adquirirmos nobreza de alma.
Descartes escreve:
Basta pensar que a aquisição de um bem ou a fuga de um mal é possível para sermos incitados a desejá-la. Mas, quando consideramos, além disso, se há muita ou pouca probabilidade de se obter o que se deseja, o que nos representa haver muita excita em nós a esperança, e o que nos representa haver pouca excita em nós o temor, de que o ciúme constitui uma espécie.
Ele reflete sobre a raiz comum e a complementaridade da esperança e do medo:
A esperança é uma disposição da alma para se persuadir de que advirá o que deseja, a qual é causada por um movimento particular dos espíritos, a saber, pelo da alegria e do desejo misturados em conjunto; e o temor é outra disposição da alma que a persuade de que a coisa desejada não advirá; e é de notar que, por mais que essas duas paixões sejam contrárias, é possível ter as duas juntas, a saber, quando se representam ao mesmo tempo diversas razões, das quais umas fazem julgar que a realização do desejo é fácil e outras a fazem parecer difícil.
E nunca uma dessas paixões acompanha o desejo sem que não deixe algum lugar à outra.
Descartes argumenta que um grave desequilíbrio entre as duas é igualmente deletério, seja qual for a direção em que possa se inclinar — assim como um excesso de medo pode expulsar toda esperança e nos deixar paralisados para agir, um excesso de otimismo que expulsa toda incerteza e medo é igualmente paralisante para uma ação frutífera, pois nos torna complacentes. Em um sentimento que remete à insistência de Kierkegaard de que a ansiedade potencializa em vez de impedir a criatividade, Descartes escreve:
Quando a esperança é tão forte que expulsa inteiramente o temor, ela muda de natureza e se chama segurança ou confiança; e, quando estamos certos de que aquilo que desejamos advirá embora continuemos a querer que advenha, deixamos, no entanto, de ser agitados pela paixão do desejo, que levava a buscar com inquietação sua ocorrência; do mesmo modo, quando o receio é tão extremo que tira todo lugar à esperança, converte-se em desespero; e esse desespero, representando a coisa como impossível, extingue inteiramente o desejo, o qual só se dirige às coisas possíveis.
Meio milênio depois, As Paixões da Alma permanece uma obra-prima de extraordinária percepção sobre o funcionamento da mente, coração e espírito humanos.
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