InícioLifestyleA saga do homem que tentou substituir a palavra "futebol" por "ludopédio"

A saga do homem que tentou substituir a palavra “futebol” por “ludopédio”

Em 1989, a revista Veja fez um suplemento em comemoração aos 100 anos da República. A graça é que os textos foram escritos como se os jornalistas vivêssemos na época da proclamação.  Era como se estivéssemos cobrindo-a na semana mesma de 15 de novembro. Eu saíra fazia pouco tempo da Veja para ser editor-executivo da Exame. Mesmo assim, me encomendaram dois artigos: um perfil do Barão de Mauá, o maior empresário brasileiro de então, e um perfil de um latinista arrebatado, Castro Lopes. Lopes quis purificar a língua falada no Brasil de anglicismos e galicismos, e produziu neologismos como ludopédio para substituir o futebol. Quase nada vingou, como você poderá ver no quadro posto no pé deste artigo,  exceto por uma ou outra palavra como roupão, que ocupou o lugar do peignoir. Você pode apreciar o esforço titanicamente frustrado de Lopes (1827-1901) nas linhas abaixo.

É possível que o leitor esteja lendo este texto agora em sua cama, com a ajuda de seus nasóculos e à luz suave de um lucivelo. Os artigos escritos pelos alvissareiros misturam-se, harmoniosamente, aos preconícios que louvam as virtudes de sortidos produtos. Faz calor neste final de primavera, e decerto o nosso leitor não retira há muito tempo de sua gaveta o focale que lhe aquece o pescoço no frio. E ele provavelmente terá reparado como é grande, nos últimos tempos, o número de ludâmbulos que, vindos de outros Estados e até de outros países, se abalam a conhecer os encantos da cidade.

Não te sintas o mais ignaro dos brasileiros se, no parágrafo anterior, tropeçaste em vocábulos como “nasóculos”, “Iucivelo”, “alvissareiro”, “preconício”, “focale” e “ludâmbulos”. Consultados sobre o significado de tais palavras, quase todos os jornalistas desta publicação que ora tens em mãos tropeçaram exatamente onde foste ao chão. Um, mais curioso, tratou de correr ao Caldas Aulete, mas foi inútil. Cerrou as páginas do dicionário tão no ar quanto as abrira. É que todas aquelas palavras acabam de ser criadas pelo gramático carioca Antônio de Castro Lopes, 62 anos, um latinista de nomeada que é médico por profissão e decidiu investir contra os galicismos e anglicismos que, a seu ver, contaminaram atrozmente a língua pátria. As palavras a que Castro Lopes tenta dar vida e aquelas que ele pretende suprimir estão arroladas no recém-lançado Neologismos Indispensáveis e Barbarismos Dispensáveis, livro que serviu de tema para conversas, e piadas, trocadas entre o ex-imperador Pedro II e o Visconde de Taunay.

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“Não é de desenterrar palavras mortas e sepultadas que se trata”, explica o autor no prefácio do opúsculo. “Mas de limpar, de expurgar a linguagem vernácula de vozes bárbaras, de construções contrárias à índole daquela, e de criar com bons elementos termos que no idioma português faltem para traduzir os exóticos”. Castro Lopes não tenta promover reformas apenas na língua portuguesa. Sugere muitas outras. Tem, pronta, uma fórmula para acabar com a dívida interna e externa do país, ou, pelo menos, é o que garante. Tal fórmula apóia-se numa moeda universal, o ponto alto da plataforma com a qual se lançou candidato a deputado provincial pelo Rio de Janeiro. Não se conhece nenhuma adesão de outros países à tal da moeda universal do latinista, mas o fato é que ele se elegeu deputado.

Acusem-no, os que quiserem, de purista extremado, mas não o tomem por rabugento. Será um equívoco. Castro Lopes tem um surpreendente bom humor. Daria um excelente cômico se quisesse. Observe-se sua investida contra a palavra peignoir. Não cria, no caso, um neologismo. Vai buscar o vocábulo português que julga correspondente: roupão. Dirigindo-se ao “belo sexo”, Castro Lopes pergunta: “Por que empregareis o termo francês peignoir quando esse traje não serve para o fim que o nome indica?” Logo depois, lança, às damas nacionais, um apelo que revela seu talento humorístico: “Despi, portanto, eu vos suplico, o peignoir francês, e vesti o vosso roupão”.

Se daqui a 100 anos os neologismos do senhor Castro Lopes estarão vivos ou mortos, ninguém pode saber. Alguém usará a expressão “protofonia” como abertura de um ensaio, uma ópera, uma peça? Haverá crianças que peçam aos pais que façam um convescote domingo no parque, em vez de piquenique? Em duas crônicas recentes, o escritor Machado de Assis referiu-se ao trabalho de Castro Lopes com sarcasmo reprovador. O latinista não se intimida. Diz-se à boca miúda que, a cada golpe desferido por um adversário, responde com um toast solitário à cruzada pelo vernáculo – perdão, onde se leu “toast”, leia-se brinde.

As mudanças propostas por Lopes, algumas das quais vingaram:

  • Abajur – Lucivelo ou lucivéu
  • Avalanche – Runimol
  • Bijuteria – Joalheira
  • Boulevard – Calçada
  • Cachecol – Focale
  • Chalé – Castelete
  • Champignons – Cogumelos
  • Claque – Venaplauso
  • Debut – Estréia
  • Engrenagem – Entrosagem
  • Feérico – Fatídico
  • Massagem – Premagem
  • Mise-en-scène – Encenação
  • Nuance – Ancenúbio
  • Pince-nez – Nasóculos
  • Piquenique – Convescote
  • Reclame – Preconício
  • Repórter – Alvissareiro
  • Turista – Ludâmbul

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Paulo Nogueira
Paulo Nogueira
Paulo Nogueira (1956-2017) é o pai de Pedro Nogueira, editor-chefe do El Hombre. "Ele foi meu herói", diz Pedro. "E continua sendo." Ao longo da carreira, dirigiu várias revistas da Abril e da Globo. Também escreveu artigos para o El Hombre que, frequentemente, reeditamos e republicamos no site.