Eu tenho que admitir: minha sensibilidade musical é limitada.
Não sou capaz de compreender a profundidade da música de Ravi Shankar. Cabeça com fronteiras, moldada pela configuração musical do ocidente, tudo o que sair do A/B/A/B/C/B (ou, para quem preferir, verso-refrão-verso-refrão-ponte-refrão) me soa estranho. Não é confortável. Há quem defenda que arte é justamente a promoção do desconforto, a cutucada na ferida. Mas, me diga, quem me ensinou a apreciar uma obra de arte ou, no mínimo, a entender esse conceito?
Mas vamos deixar essa discussão para outro dia, porque hoje viemos prestar um reconhecimento. Um reconhecimento justo.
Você provavelmente já ouviu falar de Ravi Shankar – principalmente quando o nome dele vem atrelado ao dos Beatles, mais especificamente ao de George Harrison. Deve saber que ele foi um dos maiores tocadores de cítara do mundo; foi o responsável pela divulgação mundial da música indiana; é pai da graciosa Norah Jones; foi intitulado por George como “padrinho da World Music”; participou, junto do ex-Beatle, da organização do festival beneficente Concert for Bangladesh, o primeiro evento filantrópico de tal porte; compôs para concertos, balés e trilhas sonora de filmes; foi nomeado para o Grammy 2013 de Melhor Álbum de Música do Mundo com The Living Room Session Part 1; participou de festivais pop como Monterey Pop Festival e Woodstock; e é reverenciado por todos no mundo musical.
(MAIS: Memórias de um saxofonista)
(MAIS: A gaiola de Arnaldo Baptista)
O que você talvez não saiba é que Shankar valorizava a música clássica e entendia que ela deveria ser introduzida no jardim de infância; também achava que um computador jamais substitui um bom Guru no aprendizado dos estudantes; talvez você não saiba que ele nunca cobrou um centavo de seus alunos e entendia que a indústria deveria adotar essa mesma ideia, pois assim os estudantes não precisariam se preocupar em trabalhar para pagar os estudos, o que atrapalha o processo de aprendizagem; é possível que você ignore igualmente que ele pedia para que lhe chamassem apenas de Ravi Shankar e não de pândita (título honorífico na Índia que designa os sábios) e que era um exemplo de humildade.
Ravi tinha uma alma nobre, não ligava para títulos – tampouco para dinheiro. Ele enxergava na moeda um meio para um fim, e não um fim em si mesmo. Levava seus alunos para assistirem concertos com objetivos pedagógicos e arcava com todas as despesas; realizava festivais de musica tirando dinheiro do próprio bolso; ajudou seu parceiro Ustad Allah Rakha – que lhe acompanhava na tabla (instrumento percussivo) – pagando-lhe uma quantia todo mês por alguns anos, e também auxiliou Ustad Bismillah Khan, músico que tocava shenhai (instrumento de sopro indiano), durante uma passagem sua pelos Estados Unidos, assumindo todos os seus gastos e ainda lhe concedendo uma ajuda de 10 mil dólares.
Ravi Shankar parecia ser daquelas pessoas que sabem de algo que não se transmite por palavras, portador de um conhecimento que veio pelo mecanismo da compreensão e não do entendimento. (O entendimento se efetua pela razão, é a racionalização de uma ideia; a compreensão se efetua pela experiência, é o conhecimento perfeito de algo).
Certa vez ele disse: “Como alguém coloca o significado espiritual da música no papel?”.
Eu, dessa vez, digo: como traduzir o significado espiritual de Ravi Shankar num simples texto?
Simplesmente não dá.
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