No dia 19 de março de 2004 estreava, nos Estados Unidos, uma outra obra-prima que é cada vez mais cultuada: “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças” é frequentemente citado como um dos filmes modernos mais injustiçados pelo Oscar, apesar de ter ganhado o prêmio de Melhor Roteiro Original.
Um filme cult, inteligente, cronologicamente não muito fácil, mas capaz de tocar até o mais descompromissado espectador.
O que o romance entre Joel e Clementine tem de tão especial? É óbvio que um filme mexe diferentemente com cada espectador, até pelas referências pessoais de cada um.
Mas mesmo assim, por mais subjetiva que seja nossa paixão por determinado filme, é possível analisar o que faz dele uma produção tão inesquecível.
Aviso? Este texto pode conter pequenos spoilers para quem ainda não viu.
O filme usa um cenário surreal para se aprofundar em algo tão comum ao ser humano. Você não precisa ter tido um relacionamento sério para entender o que é o amor.
Você não precisa nem ser romântico para entender isso. E por mais que algumas das brigas entre casais sejam racionalmente incompreensíveis, entendemos que a paixão humana nada tem a ver com racionalidade.
É ao mesmo tempo bonito e triste acompanhar uma história tão realista nos sentimentos que transmite sobre um casal que se conhece, se apaixona, tem seu relacionamento desgastado e termina.
Mas “Brilho Eterno” não é somente sobre a relação amorosa entre duas pessoas. É sobre as dores de nossas memórias, o peso de nossos erros e como tudo isso nos transforma em quem somos hoje. O arrependimento e as “segundas chances” são tão cruciais para a gente quanto nossas desilusões.
E, no final das contas, talvez a imagem que construímos das pessoas seja realmente mais agradável do que elas realmente são, mas só foram construídas por elas serem quem realmente são.
Os personagens de Elijah Wood, Tom Wilkinson, Mark Ruffalo e Kirsten Dunst não estão lá à toa. Todos são tridimensionais, têm seus dramas próprios, mas que claramente não foram colocados apenas para preencher tempo.
São histórias muito bem inseridas no contexto, que dão algumas outras óticas sobre a situação surreal proposta e, claro, todas relacionadas ao amor e às memórias.
Da obsessão de Patrick (Wood), tentando conquistar Clementine (Kate Winslet) através daquilo que Joel (Jim Carrey) perdeu, ou seja, suas memoras; à paixão de Mary (Dunst), tudo é trabalhado de forma sensível e honesta.
Além, é claro, de que os atores coadjuvantes se saem muitíssimo bem. E a prova de que tudo isso funciona é que, por mais que estejamos totalmente imersos na viagem de Joel por suas lembranças, não sentimos nenhum desconforto quando ela pausa para dar atenção aos outros personagens.
A direção de arte, a decoração de set e o figurino, respectivamente de David Stein, Ron Von Blomberg e Melissa Toth, fincam o pé no realismo, quando necessário, mas não deixam de cumprir sua função como construção de personagem e soltam-se num belo surrealismo, quando possível.
A fotografia de Ellen Kuras não é apenas visualmente encantadora, como também contribui para a estética do sonho, para as transições de cenas e para refletir os sentimentos dos protagonistas. A montagem de Valdís Óskarsdóttir também, além de ajudar a estabelecer o viés onírico, dá uma dinamicidade formidável à obra.
O som aproveita muito bem o tema para se mostrar criativo como poucas vezes pode ser percebido. Os efeitos visuais, dos mais sutis aos mais chamativos, estão ali apenas para ajudar na história e o fazem de forma formidável.
A trilha sonora de Jon Brion – que também produziu a versão de Beck para “Everybody’s Gotta Learn Sometime” de James Warren, música tema do filme – varia muito bem entre o romantismo doce, o humor de desconforto e o suspense do pesadelo, e é capaz de emocionar por si só.
Nem todos os diálogos são méritos do roteirista Charlie Kaufman. Os atores tiveram bastante liberdade para improvisar. Boa parte das conversas entre Joel e Clementine vêm de ensaios mais livres entre Jim e Kate.
Independente disso, entre as falas encontramos frases como “Por que eu me apaixono por toda mulher que eu vejo e que me mostra o mínimo de atenção?” ou “Adultos são essas misturas de tristezas e fobias”ou “Ela era legal, legal é bom.”
Além de diálogos tocantes e outros bem humorados, do poema que dá título ao filme, e de cenas que citarei mais adiante.
Um dos grandes trunfos do filme foi ter conseguido, à medida do possível, retratar como é o ambiente de um sonho.
Sem medo de parecer confuso e sabendo que isso acrescentaria muito à produção, Michel Gondry e sua equipe fizeram um constante uso de sombras e desfoques, transições entre cenários, repetições, alterações sonoras, cortes abruptos, objetos que desaparecem, coisas desmoronando e até a presença de vozes externas ao sonho.
A construção desse surrealismo é um exemplo claro de como Cinema é uma arte essencialmente coletiva. Se os diferentes departamentos da produção não tivessem conversado tão bem, provavelmente a tentativa de passar essa sensação teria falhado grotescamente.
Mas não, os sonhos de “Brilho Eterno” são uns dos mais realistas (se é que podemos chamar assim) que Hollywood já criou.
E é óbvio que tudo isso só foi possível graças à direção criativa e segura do francês que, famoso por dirigir videoclipes como os da Björk, já havia trabalhado com Kaufman em “Natureza Quase Humana”, de 2011.
Não apenas nas coisas visualmente perceptíveis, a impressão que dá é que ninguém poderia ter dirigido tão bem esse trabalho. Quando possível, usou efeitos visuais feitos no set e não na pós-produção, como na parte em que Joel criança está numa cozinha em escala maior que ele, ou na cena em que a câmera alterna entre dois Joels no escritório do Dr. Mierzwiak (Wilkinson).
Ele também evitou fazer marcações nas cenas, deixando os atores livres para que andassem, sentassem, deitassem e fizessem aquilo que sentissem que era o melhor, no momento.
Já na cena em que Kate Winslet e Jim Carrey dublam duas crianças, as falas foram gravadas ao vivo, para que os atores fossem mais espontâneos. Isso sem falar na forma quase sutil como esconde o rosto de Elijah Wood no começo.
E o que dizer da beleza que é o momento em que os créditos de abertura aparecem? Passados quase 20 minutos de projeção é quando o filme realmente começa, cronologicamente.
Um caso não tão comum de como os créditos podem ser usados para ajudar, mesmo que de forma não perceptível, a contar a história. Beleza ainda ressaltada pela transição do futuro para esse começo, nos fazendo até pensar que talvez fosse apenas a continuação da cena anterior.
Óbvio, é difícil julgar e talvez não tenhamos uma resposta nem mesmo com alguma distante refilmagem que possa vir a ser produzida algum dia, mas “Brilho Eterno” poderia ter sido um grande desperdício de roteiro nas mãos de outro diretor.
Talvez o leitor possa estranhar eu ter reservado um tópico inteiro para algo tão simples como isso. Mas é porque merece.
As diversas cores do cabelo da personagem de Kate Winslet viraram referência pop, mas ficaram famosas não apenas por ajudarem a caracterizar a paixão do protagonista.
É fato que a tintura mostra muito da personalidade de Clementine, mas é aí que entra um grande ponto da inteligência do roteiro, já que Charlie Kaufman se aproveitou disso como um recurso para contar a história.
Para os espectadores menos atentos, essas cores servem também para ajudar a entender a cronologia dos acontecimentos. Começando no verde, quando eles se conhecem pela primeira vez, indo para o vermelho, laranja e azul, e ainda passando pelo loiro de quando ela está “na pele” de uma amiga de infância de Joel, se você está perdido, sem saber quando algo ocorreu, é só olhar para o cabelo dela.
Mas esse assunto ainda vai mais a fundo. O verde está presente apenas quando eles se conhecem, representando uma abertura de Clementine e uma esperança de ambos, tanto na cronologia fora do sonho (quando começam a se interessar um pelo outro), quanto dentro do sonho (quando sabem que têm seus últimos momentos juntos, mas mantêm uma ponta de esperança de que assim não seja).
O vermelho aparece nos melhores momentos da relação deles — paixão, amor e apenas momentos felizes. Já quando aparece o tangerina, é quando o namoro começa acabar, quando ela começa a decidir que prefere combinar com seu casaco do que com Joel. Não por acaso é por esse apelido que Patrick a conhece. Afinal, não havia momento para ela estar mais distante do protagonista.
Já o azul tem duas leituras diferentes. No presente, ele simboliza o momento mais frio, mais triste de toda a história de Clementine que acompanhamos, enquanto o personagem de Elijah Wood tenta conquistá-la.
Mas para Joel, esse azul triste nunca existiu. Sua última lembrança dela era com o cabelo laranja. Logo, sua nova coloração, quando ele a reencontra, após a noite na qual se passa a maior parte do filme, ele está encontrando uma Clementine totalmente nova, totalmente diferente de qualquer outra que já conheceu.
O que mais se destaca em “Brilho Eterno” é o roteiro. Michel Gondry conseguiu fazê-lo chamar a atenção para todos os seus aspectos técnicos. Mas esse também é um filme em que as atuações se destacam.
Com dois personagens tão centrais, que precisam nos fazer acreditar tanto em seus momentos mais prazerosos juntos quanto em suas duras brigas, a interpretação do casal poderia facilmente decretar o fracasso da obra.
Jim Carrey já havia mostrado que, além de um genial comediante performático, poderia ser também um excelente ator dramático e contido em “O Show de Truman”, de 1998, e “O Mundo de Andy”, de 1999. Mas aqui ele mostra um Joel tímido, doce e apaixonado, com o qual é difícil não simpatizar.
Kate Winslet, de quem mais ninguém duvidava do talento, virou quase que o Jim Carrey do filme. Com bastante atuação corporal, cara e bocas, ela conseguiu criar uma Clementine impulsiva, divertida por fora e extremamente confusa por dentro.
E a união dos dois em cena nos faz lamentar ainda mais os momentos ruins do namoro, já que a dupla faz coisas estúpidas no final do relacionamento. Mas também não somos capazes de recriminar demais as atitudes de nenhum deles.
A verdade é que são duas pessoas completamente diferentes e que, aparentemente, ainda não aprenderam a conviver com essas diferenças. Mas que há um apaixonante amor entre eles, é impossível negar.
O filme não é apenas uma clássica narrativa cinematográfica tentando contar uma história. Ele é recheado de reflexões e poesia.
Não há, por exemplo, uma cena que seja escolhida a melhor, a mais querida por seus fãs por unanimidade. Selecione dez momentos do filme, jogue-os para o ar e qualquer um que você pegar será um lindo pequeno clipe sobre o amor. Coisas que apenas as situações proporcionadas por um trabalho surreal, em que lembranças se confundem com novos pensamentos, poderiam criar.
Temos a cena em que Clementine, debaixo dos lençóis, discorre sobre sua feiura enquanto uma boneca se desamassa numa linda composição de luz e sombra.
Há também a cena em que começa a chover na sala do casal. Ou então quando eles estão em um casarão desmoronando, se desculpam pelos erros do primeiro encontro e desejam ter uma “última noite” um pouco mais comprida.
Também há o duro silêncio no corredor após ambos terem ouvido suas melancólicas fitas. Quando estão deitados no gelo, ao lado de uma rachadura.
Ou então, a minha preferida, quando suas falas do momento em que se conheceram se misturam com o sentimento de saudade e com o conformismo de que não há mais o que fazer. Ao chegarem à conclusão de que está acabando, de que as últimas memórias de Joel serão mesmo apagadas, decidem que a única coisa a fazer naquele instante é, como ele diz, aproveitar.
Charlie Kaufman é um raro roteirista. Seu nome ficou prestigiado e virou sinônimo de qualidade, inteligência e muita criatividade. De “Quero Ser John Malkovich”, de 1999, a “Sinédoque, Nova York”, de 2008, suas marcas são visíveis.
Lembro de uma vez em que “Adaptação”, de 2002, foi anunciado num comercial de TV como “um filme escrito por Charlie Kaufman”. Não, nem mencionaram Nicolas Cage, Meryl Streep ou Spike Jonze.
Outro sinal de prestígio: em sete longas escritos, foi quatro vezes indicado ao Oscar. Além disso, numa lista feita em 2006 pelo WGA (Sindicato de Roteiristas dos Estados Unidos) com os 101 melhores roteiros cinematográficos da história, teve três obras citadas. A mesma quantidade de William Goldman e John Huston, um a menos que Woody Allen, Francis Ford Coppola e Billy Wilder.
Ainda mais impressionante nesse fato é a idade de seus filmes: “Adaptação” (77º), “Quero Ser John Malkovich” (74º) e “Brilho Eterno” (24º) estão entre os 7 mais recentes. O roteiro de “Brilho Eterno”, aliás, não só ganhou o Oscar, como é constantemente citado como um dos melhores de todos os tempos, não apenas pelo sindicato.
Mas independente de qualquer reconhecimento anterior ou posterior ao filme, e de qualquer prêmio ou citação que seu trabalho por “Brilho Eterno” tenha recebido, o roteiro é incrível. E não apenas por sua sensibilidade, sua originalidade, suas falas ou pelo cabelo de Clementine. É daqueles filmes que, a cada vez que vemos, percebemos mais detalhes e sacamos como tudo lá faz sentido.
O carro batido, as páginas arrancadas de seu diário, o fato de ele nunca ter ouvido falar sobre Dom Pixote — tudo está perfeitamente encaixado. Fora toda a cronologia, que é um espetáculo à parte.
A decisão de começarmos a entender o relacionamento deles a partir dos momentos mais recentes e, consequentemente, os mais dramáticos, é fundamental para o filme funcionar.
Resumindo, não estou dizendo que o roteiro é à prova de falhas, mas ele funciona tão perfeitamente que, mesmo que as tenha, não tira mérito nenhum dele. Nada que já não se esperasse do gênio Charlie Kaufman, o homem que conseguiu uma indicação ao Oscar para seu inexistente irmão gêmeo, por “Adaptação”, um filme sobre um roteirista em crise criativa que fala sobre a arte de se contar histórias. Arte da qual, convenhamos, ele entende muitíssimo bem.
Por tudo isso, “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças” é mais que uma obra de arte, é um filme, por mais clichê que possa soar, absolutamente inesquecível.
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