Ana entrou em meu consultório com os cabelos loiros soltos, vestindo sandália alta e um tailleur impecavelmente passado. Elegante como sempre. Como imaginar o que aquela figura tão delicada me diria em seguida? Minha paciente havia decidido largar toda a sua carreira profissional bem sucedida e dali em diante se dedicar exclusivamente ao BASE jump.
Para os hombres que não conhecem esse esporte, o BASE jump é uma modalidade na qual o paraquedista salta de locais imóveis. O termo se constitui das iniciais de Building, Antenna, Span e Earth (edifícios, antenas, penhascos e terra), fazendo referência a objetos fixos que se configuram em bases para os saltos.
A taxa de mortalidade dos praticantes desse esporte é altíssima, e por isso ele é proibido em diversos países.
Lembro-me que ela tinha medo. Não do pulo – que descrevia como inebriante, intoxicante, inesquecível -, mas do dia em que o desejo por mais seria tanto, que algo lhe escaparia e ela iria morrer. Contou-me que seus amigos, paraquedistas experientíssimos, se acidentavam não por falha ou erro, mas pela busca incessante e mortal por adrenalina, por mais.
Quando li a matéria de Rodrigo Coxa, o surfista de ondas gigantes, Ana me veio à cabeça e, assim como eles, mil outros atletas que se arriscam diariamente em esportes pra lá de radicais.
Insanidade, diríamos? Ana não era louca, sabia de seus riscos. Há o medo. Mas para além dele, algo maior.
O VÍCIO EM ADRENALINA
A descarga de emoção que Ana e Rodrigo perseguem é, fisicamente falando, uma reação bioquímica que envolve a liberação no cérebro de três substâncias: a adrenalina, a endorfinae a dopamina.
Quando começam os preparativos para a aventura – dobrar o paraquedas, passar a parafina na prancha, alongar-se – o esportista recebe uma descarga de adrenalina, o mediador químico que, desde que o mundo é mundo, prepara o corpo para duas reações primordiais à vida: a fuga e a luta. É dessa descarga que vêm a boca seca, o aumento da frequência cardíaca, a dilatação das pupilas e a redistribuição do fluxo sanguíneo.
Durante a prática da atividade, entra em ação a endorfina, outro mediador químico, que tem a capacidade de amortecer a dor e o desconforto provocados por eventuais lesões – daí que muita gente só percebe que quebrou o pé ou cortou o braço depois que a atividade acaba e o corpo “esfria”.
Por fim, entra em cena a dopamina, que atua no centro de prazer do sistema nervoso e é responsável pela sensação de satisfação ao final da prova.
Porém, para alguns hombres entediados com seus cotidianos, 10 segundos em queda livre ou uma onda de 33 metros é o suficiente para energizá-los para os próximos anos. Se regozijam apenas com o relato da experiência.
Outros são completamente capturados pela adrenalina e mergulham no perigo. “Algumas pessoas têm uma regulagem diferenciada de dopamina. Quanto maior a quantidade liberada, mais o indivíduo precisa dela. Se ficar sem sua dose de dopamina, ele pode até entrar em depressão ou se tornar agressivo”, alerta o professor do departamento de psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo, Marco Tulio de Mello.
Segundo ele, ainda não se sabe por que algumas pessoas precisam estimular mais as áreas do prazer do que outras, mas é fato comprovado que algumas desenvolvem um quadro parecido com o da dependência de drogas quando se privam dessas emoções.
Nem todos os radicais têm problemas psicológicos – o que empurra um esportista para o perigo muitas vezes é o simples fato de um amigo, ou pai, ou irmão mais velho já praticar uma modalidade mais light da atividade. Mas, no fundo, a prática do risco intenso, com possibilidade de um desfecho fatal, tem raízes complexas e, em muitos casos, está atrelada a um fascínio pela morte que a pessoa nem sabe que possui.
O psiquiatra e psicoterapeuta Eduardo Ferreira Santos, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo alerta: “Quem se arrisca pode estar escondendo uma tentativa de suicídio inconsciente. Pode ser uma pessoa que desafia a morte como se fosse um herói, onipotente, tão poderoso que pode vencer a própria morte”.
Como há mais exceções para o ser humano do que postulações, distúrbios como os descritos acima não são encontrados em todos os esportistas radicais, em geral pessoas equilibradas e que sabem os perigos envolvidos na prática.
Ana costumava relatar o prazer que a tomava no cálculo de todo o trajeto que faria após o pulo, e os riscos que estariam envolvidos e que deveriam ser evitados. Sabia, com antecedência, o local que pularia, qual a velocidade a ser atingida, a direção que deveria tomar, as correntes térmicas que poderiam desviar sua trajetória e o local exato do pouso. Um pulo insano em direção ao vazio, mas que envolvia grande atenção e organização por parte da atleta.
A explicação então talvez esteja no relato de Ana: “Um dia, em meio a um pulo, onde eu havia passado meses escolhendo o local do pouso, quis mais. Mais adrenalina. Quis saber o que aconteceria se desviasse de todos os meus planos. Quase morri. Não achava local para pouso e quebrei uma perna ao aterrissar no meio de árvores”.
A adrenalina pode se tornar vício à medida que atua no sistema de recompensa cerebral: isto faz com que o corpo libere doses maiores de dopamina e tenha a sensação de prazer e felicidade associadas às situações de estresse. Quanto maior a necessidade dessas substâncias no organismo, maior o risco envolvido na prática do esporte. E do vício, muitas vezes, pode-se morrer.
Nestes casos, como o de Ana que procurou auxílio na terapia, é necessário iniciar o tratamento à base de remédios e terapias para diminuir o alto nível de estresse e, consequentemente, a dependência e produção da adrenalina no corpo. Como um adesivo de nicotina que acalma o organismo viciado.