Uma mulher nervosa, aflita, não encontra resposta para um dos dramas mais cruéis da humanidade no capítulo amoroso. Ela me manda um email com uma identidade misteriosa: “Srta A”.
É um lamento, um gemido, uma angústia que jorra incontrolada de sua alma desiludida de moça sonhadora: por que, cargas d’água, a gente só se lembra das coisas boas depois do adeus?
Normalmente eu suprimiria as cargas d’água, por ser uma expressão gasta, mas ali, da maneira que a “Srta A” a colocou, o velho clichê ganhou uma força nova, um vigor juvenil. Mantive-o, então.
A interrogação desesperada da “Srta A” é sinal de que provavelmente neste instante ela lamenta um amor perdido que em sua memória é belo como um poema de Manuel Bandeira e ensolarado como um dia de dezembro na Vila Mar, ali pertinho do Bira’s Bar, onde passei os verões deslumbrantemente fugidios da adolescência.
Imagino a “Srta A”, braços elevados para os céus, os olhos úmidos, buscando uma resposta para um dos caprichos do amor que mais nos machucam: a sensação torturante, cruel como um cossaco russo e ríspida como um cigano búlgaro, de que perdemos de bobeira, por desleixo, algo que não soubemos valorizar e cuidar quando podíamos e devíamos.
Mas não dos céus, e sim da ciência, aparece uma resposta científica, objetiva, neurológica, quase que completamente inatacável. Um amigo médico me contou tudo. E trouxe a luz da razão onde antes havia a treva da emoção e da dor. Acode a “Srta A” com a voz da medicina. Copio e colo, por mérito do autor:
As boas recordações são neurologicamente mais estáveis que as más recordações.
Ou seja, enquanto as coisas boas ficam ecoando na sua cabeça, as ruins vão “fading out”, ficando borradas, apagando, sumindo.
Não é que você “só lembra das coisas boas depois que acaba”, é que você, enquanto está próxima dos eventos, está num turbilhão de sentimentos bons e ruins.
Quando a história acaba, os ruins vão sumindo e os bons ficam. Daí a ilusão de que “não era tão ruim assim”. Era, mas você esqueceu.
Sempre terminei, sem conhecer a explicação científica que a neurologia ao que tudo indica oferece, vendo o passado sob lentes que evidentemente o tornavam mais azul do que era. A dor da despedida, assim, não raro ardeu em mim como as lenhas da inquisição, e se muitas vezes eu não gritei foi por autocontrole estoico e não por falta de vontade.
Até o dia em que li um sábio da Antiguidade.
Ele dava um conselho básico no amor perdido: fazer a lista dos defeitos de quem deu uma bota em você e olhá-la uma, duas, quantas vezes for necessário. Relembrar, nos detalhes sádicos, as agressões, as palavras ruins, as noites perdidas por conta das brigas.
Mentalizar, para usar a terminologia neurológica, a mesquinharia, a patifaria, as mentiras, todas as decepções que levaram a relação ao crematório da Vila Alpina.
Pode demorar um pouco, mas esse método, se seguido disciplinadamente, neutraliza a explicação científica tão bem anotada por meu amigo médico: a permanência teimosa das boas lembranças e o apagamento quase que instantâneo das más.
Foi ruim, e por isso acabou. Foi mais que ruim. Foi péssimo, um pesadelo. Ponto. Por isso acabou. Sorte sua.