O texto abaixo, sobre a conexão entre a leitura e a democracia na visão de Carl Sagan, foi publicado por Maria Popova no site The Marginalian.
“Alguém lendo um livro é um sinal de ordem no mundo”, escreveu a poeta Mary Ruefle.
E, quatro séculos antes, enquanto inaugurava uma nova ordem mundial, Galileu refletia sobre como os livros nos concedem poderes sobrehumanos. Este foi um sentimento que Carl Sagan (1934 – 1996), reiterou em sua afirmação deslumbrante de que “um livro é a prova de que os humanos são capazes de trabalhar com a magia”.
Pouco antes de sua morte, Sagan elaborou essa convicção apaixonada em um ensaio intitulado “O Caminho para a Liberdade”. Coescrito com Ann Druyan — diretora criativa do projeto Golden Record e o amor de sua vida -, trata-se de uma obra decisiva. O trabalho foi publicado em “O Mundo Assombrado pelos Demônios: A Ciência como uma Vela no Escuro”. Este é um volume indispensável, que aborda primordialmente a dicotomia “nós contra eles”, a ciência como ferramenta da democracia e o pensamento crítico.
Com sua ampla perspectiva cósmica, Sagan coloca o milagre nascente da palavra escrita em perspectiva evolutiva:
Por 99% do tempo de existência dos humanos na Terra, ninguém sabia ler ou escrever. Essa invenção ainda não havia sido feita. Exceto pela experiência direta, quase tudo o que sabíamos era transmitido oralmente. Como no jogo infantil “Telefone”, ao longo de dezenas e centenas de gerações, as informações seriam perdidas lenta e distorcidamente.
Contudo, os livros mudaram tudo isso. Livros, adquiríveis a baixo custo, nos permitem interrogar o passado com alta precisão; acessar a sabedoria da nossa espécie; compreender o ponto de vista dos outros, e não somente dos poderosos. E mais: nos permitem contemplar — com os melhores professores — as percepções, extraídas dolorosamente da natureza, das maiores mentes que já existiram, vindas de todo o planeta e de toda a nossa história. Eles permitem que pessoas há muito mortas falem dentro de nossas cabeças. Livros podem nos acompanhar em todos os lugares. São pacientes quando somos lentos para entender, permitem que revisitemos as partes difíceis quantas vezes quisermos e nunca criticam nossas falhas.
Mais de um século depois de Walt Whitman insistir que a literatura é central para uma democracia saudável, Sagan acrescenta:
Livros são fundamentais para entender o mundo e participar de uma sociedade democrática.
Ecoando a percepção exposta anteriormente por Hannah Arendt sobre como os tiranos usam o isolamento como arma de opressão — e que isolamento mais esmagador do que ser cortado da vida da mente? — Sagan escreve:
Tiranos e autocratas sempre entenderam que alfabetização, aprendizado, livros e jornais são perigosos. Eles podem colocar ideias independentes e até rebeldes na cabeça de seus súditos. O Governador Real Britânico da Colônia da Virgínia escreveu em 1671: “Agradeço a Deus por não haver aqui escolas gratuitas nem impressão; e espero que não as tenhamos nos próximos cem anos. O aprendizado trouxe desobediência, heresia e seitas para o mundo, e a impressão as divulgou e difamou o melhor governo. Deus nos livre de ambos!”
Considerando as complexas forças socioeconômicas que conspiram para restringir oportunidades e o poderoso modo como os livros contrariam essas forças, Sagan reflete sobre sua própria experiência:
Ann Druyan e eu viemos de famílias que conheceram a pobreza extrema. No entanto, nossos pais eram leitores apaixonados. Uma de nossas avós aprendeu a ler porque seu pai, um agricultor de subsistência, trocou um saco de cebolas por aulas com um professor itinerante. Ela leu pelos próximos cem anos.
Nossos pais tiveram higiene pessoal e a teoria dos germes da doença incutidas neles pelas escolas públicas de Nova York. Em seguida ao nosso nascimento, leram as prescrições sobre nutrição infantil recomendadas pelo Departamento de Agricultura como se tivessem sido transmitidas do Monte Sinai. Nosso livro do governo sobre saúde infantil foi repetidamente colado à medida que suas páginas caíam. Os cantos estavam desgastados. Conselhos importantes foram sublinhados. Ele foi consultado em toda crise médica.
Por um tempo, meus pais deixaram de fumar — um dos poucos prazeres disponíveis para eles nos anos da Depressão — para que seu bebê pudesse ter suplementos vitamínicos e minerais. Ann e eu tivemos muita sorte.
Com um olhar admirado para o exemplo e legado do escravo liberto e reformador social Frederick Douglass, Sagan conclui, posteriormente:
As engrenagens da pobreza, assim como de ignorância, desesperança e baixa autoestima, se entrelaçam no intuito de criar uma espécie de máquina de fracasso perpétuo que esmaga sonhos de geração em geração. Todos nós pagamos o preço para mantê-la funcionando. O analfabetismo é seu pino central. Frederick Douglass ensinou que a alfabetização é o caminho da escravidão para a liberdade. Existem muitos tipos de escravidão e muitos tipos de liberdade. Mas a leitura ainda é o caminho.
“O Mundo Assombrado pelos Demônios” permanece, em contrapartida, um dos livros mais importantes escritos no piscar de olhos cósmico desde que começamos a escrever e sua mensagem central é, infelizmente, cada vez mais relevante em nossa era de irracionalidade.
Leitora ávida, aficcionada por chai latte e por gatos, a socióloga Camila escreve sobre desenvolvimento pessoal aqui no El Hombre.
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