O seguinte texto, sobre a liberdade, o destino e o valor do desespero como um portal rumo à mais profunda alegria, foi publicado originalmente no site The Marginalian é e da autoria de Maria Popova.
“Não há amor pela vida sem desespero diante da vida”, observou Albert Camus ao contemplar a relação entre felicidade e desespero pouco antes de seu compatriota Jean-Paul Sartre escrever sua famosa linha de que “a vida humana começa além do desespero”. No entanto, tendemos a nos relacionar com o desespero com extrema aversão, percebendo-o como uma fonte de sofrimento e não como uma força vitalizadora.
Poucas experiências incitam o desespero mais prontamente do que o ataque à liberdade e a perda de autonomia — nossa sensação de que a vida, as circunstâncias ou outro ator externo está frustrando nossos resultados desejados.
Porém, a liberdade e o desespero, argumenta o grande psicólogo existencial Rollo May (1909 – 1994) em seu livro de 1981 “Liberdade e Destino“, não são dois polos do nosso espectro de desejo. Em vez disso, são forças complementares que se equilibram mutuamente. Reajustando a nossa relação com o desespero, podemos conhecer a liberdade de uma maneira mais íntima e completa.
May examina a centralidade da liberdade em nosso sistema de valores e nossa experiência elemental da vida:
A capacidade de experimentar assombro e maravilha, de imaginar e de escrever poesia, de conceber teorias científicas e grandes obras de arte, pressupõe liberdade. Todos esses são essenciais à capacidade humana de refletir.
A liberdade é também única no sentido de que é a mãe de todos os valores. Se considerarmos valores como honestidade, amor e coragem, descobrimos, curiosamente, que eles não podem ser colocados paralelamente ao valor da liberdade. Pois os outros valores derivam seu valor de serem livres; eles são dependentes da liberdade.
A liberdade é, portanto, mais do que um valor em si: ela está na base da possibilidade de valorizar; é fundamental para a nossa capacidade de atribuir valor. Sem liberdade, não há valor digno desse nome. Neste momento de desintegração da preocupação com o bem público e a honra privada, neste tempo da morte dos valores, nossa recuperação – se formos alcançá-la – deve ser baseada em nosso acordo com esta fonte de todos os valores: a liberdade.
Mas porque o conceito de liberdade é tão multifacetado, tão dimensional e tão entrelaçado com tudo o que valorizamos, também é difícil capturar seu significado completo. May oferece uma definição perspicaz e inspirada:
A liberdade é como você confronta seus limites, como você se envolve com seu destino no dia-a-dia. A dignidade humana se baseia na liberdade e a liberdade na dignidade humana. Um pressupõe o outro.
No entanto, frequentemente perdemos de vista esse aspecto diário e auto-criativo da liberdade. May lamenta inclusive que parecemos ter “facilmente e prontamente agarrado a liberdade como nosso direito de nascença e esquecido que cada um de nós deve redescobri-la por nós mesmos”. Nisso reside o paradoxo central da liberdade: a sua interação indelével com o destino, que Simone de Beauvoir capturou lindamente uma década antes ao contemplar como a chance e a escolha convergem para nos tornar quem somos. A liberdade, nesse sentido, reside no que escolhemos fazer com as cartas que nos foram dadas — mas as cartas são as cartas.
May escreve:
A liberdade deve sua vitalidade ao destino, e o destino deve seu significado à liberdade. Nossos talentos, nossos dons, são emprestados, a serem chamados a qualquer momento pela morte, pela doença ou por qualquer um dos inúmeros outros acontecimentos sobre os quais não temos controle direto. A liberdade é essencial para nossas vidas, mas também é precária.
Quando essa precariedade mergulha a liberdade até o fundo existencial — quando a vida nos lança em circunstâncias indesejáveis e nos abate com a perda da agência —, sucumbimos ao desespero. Mas aqui, em uma das partes mais reveladoras do livro, May faz um ponto contra-intuitivo: ele enquadra o desespero como uma emoção construtiva, “muitas vezes um prelúdio necessário para a maior realização”. Quando o desespero nos prende ao fundo do poço e nos força a abandonar tudo que agarramos, incluindo nossas neuroses e esperanças ilusórias, ele nos permite nos reconstruir de uma maneira que não é possível dentro dos parâmetros confortáveis de uma vida não perturbada pelo inesperado.
May examina esse desespero fértil:
Estou falando de desespero não como uma postura intelectual. Se é um humor colocado para impressionar alguém ou para expressar ressentimento contra qualquer pessoa, não é desespero genuíno.
O desespero autêntico é aquela emoção que nos força a nos reconciliarmos com o nosso destino. Ele é o grande inimigo da pretensão. É uma demanda para enfrentar a realidade da própria vida. O desespero é como um forno de fusão que derrete as impurezas do minério. Ele não é liberdade em si, mas é uma preparação necessária para a liberdade… A realidade vem exigindo que abandonemos todas as medidas pela metade e exigências temporárias e maneiras de sermos desonestos conosco mesmos e enfrentemos nossas vidas descobertas.
Em um sentimento de pertinência sóbria para o nosso próprio clima cultural, May acrescenta:
A função do desespero é eliminar nossas ideias superficiais, nossas esperanças ilusórias, nossa moralidade simplista… É importante nos lembrarmos desses pontos, pois há sinais de que nós, nos Estados Unidos, podemos estar no limiar de um período como nação em que não poderemos mais camuflar ou reprimir nosso desespero.
Assim como o tédio pode servir como leito para a criatividade, o desespero, argumenta May, não apenas não é inimigo da alegria, mas nivela o solo para que ela possa florescer. Três décadas antes de Toni Morrison defender a construção a partir do fundo do desespero, May escreve:
Aqueles que conseguem sentir um desespero saudável são frequentemente aqueles que, ao mesmo tempo, conseguem experimentar o maior prazer e alegria… Acreditamos mais firmemente na dignidade e na nobreza de ser humano após ver uma performance de tragédia do que comédia: os personagens e a queda trágica de Hamlet, Macbeth, Lear, ou até mesmo de Harry em The Iceman Cometh nos dão uma convicção do significado da vida. Ao deixarmos o teatro, não estamos apenas aliviados, estamos inspirados. O desespero que sentimos no drama destaca seu oposto, a nobreza da vida.
A pior condição de todas é se gabar de nunca ter estado em desespero, pois isso significa que a pessoa nunca esteve autenticamente consciente de si mesma.
Mas como o desespero, como qualquer um que o tenha experimentado sabe, semeia um estado de profunda infelicidade, May faz uma distinção vital entre felicidade e alegria, enquanto nota que a boa vida inclui ambas em diferentes momentos:
Felicidade é a realização dos padrões passados, esperanças, objetivos… Felicidade é algo mediado, pelo que podemos dizer, pelo sistema nervoso parassimpático, que tem a ver com comer, contentamento, descanso, placidez. Alegria é mediada pelo sistema oposto, o simpático, que não faz com que se queira comer, mas estimula-se para a exploração. Felicidade relaxa; alegria desafia com novos níveis de experiência. Felicidade depende geralmente do estado exterior; a alegria é um transbordar de energias internas e leva ao assombro e admiração. A alegria é uma liberação, uma abertura; é o que vem quando se é genuinamente capaz de “deixar ir”. Felicidade está associada à satisfação; alegria à liberdade. Alegria são novas possibilidades – ela aponta para o futuro. Alegria é viver no fio da navalh; felicidade promete satisfação do estado atual, realização de antigas saudades. A alegria é a emoção de novos continentes para explorar; é um desdobramento da vida.
Uma geração após Anaïs Nin exaltar o poder gerativo de atraif o desconhecido, May argumenta que o que diferencia a alegria da felicidade, acima de tudo, é sua respectiva orientação para o familiar e o possível:
A felicidade está relacionada à segurança, ao ser tranquilizado, a fazer as coisas como se está acostumado e como nossos pais fizeram. A alegria é uma revelação do que era desconhecido antes. A felicidade muitas vezes termina em uma placidez à beira do tédio. Felicidade é sucesso. Mas a alegria é estimulante, é a descoberta de novos continentes emergindo dentro de si mesmo.
A felicidade é a ausência de discórdia; a alegria é o acolhimento da discórdia como base para harmonias superiores. Felicidade é encontrar um sistema de regras que resolva nossos problemas; a alegria é correr o risco necessário para romper novas fronteiras.
Alegria segue o desespero corretamente confrontado. A alegria é a experiência da possibilidade, a consciência da liberdade de alguém ao confrontar seu destino. Nesse sentido, o desespero, quando diretamente enfrentado, pode levar à alegria. Após o desespero, a única coisa que resta é a possibilidade. Todos nós estamos à beira da vida, e cada momento nosso compreende essa beira. Diante de nós está apenas a possibilidade. Isso significa que o futuro está aberto.