Vicente Matheus (1908-97) foi o maior presidente da história do Corinthians. Digo o “maior”, note-se bem, e não o “melhor”. Pois foi sob a sua gestão — que durou oito mandatos, de 1959 a 1991 — que o time amargurou seu famoso jejum de 23 anos. Mas o que lhe faltava em habilidade administrativa, sobrava em carisma. Ele produzia máximas cheias de erros gramaticais e de lógica (propositalmente, alguns dizem) que divertiam tanto seus amigos quanto seus desafetos. Exemplos? “O Sócrates é invendível, incomprável e imprestável”, “Quem está na chuva é para se queimar” e “Jogador tem que ser igual ao pato, que é um ser aquático e gramático”. Nosso colunista Paulo Nogueira encontrou em sua gaveta uma edição da revista Senhor de 1980, na qual publicou um ótimo perfil de Matheus. Digitalizamos o texto e você pode vê-lo abaixo.
“Minha história é tão triste que, se você a ouvir e tiver coração, vai chorar”. É o que costuma dizer, entre suspiros, a cabeça balançando feito um pêndulo de relógio, Vincente Matheus do Vale, brasileiro nascido em Vigo, Espanha, 72 anos, duas filhas, Abigail e Dalva, e cinco netos, Vicente, Juliana, Afonso, Luís Eduardo e Ruth.
Para identificá-lo sem risco de erro, convém qualificá-lo, antes do mais, como o presidente do Sport Club Corinthians Paulista, posto em que recebe, com idêntica intensidade, pedras e flores, votos de boa sorte e pragas, injúrias e elogios. “Paris vale uma missa”, disse o protestante Henrique IV quando lhe perguntaram se, para sentar-se no trono da França, estava disposto a converter-se ao catolicismo. E o Corinthians, trocadas as circunstâncias, vale, é claro, eventuais injustiças, tanto que Matheus, numa das frases prediletas, afirma vir-lhe primeiro o clube, depois a família, e só então o dinheiro.
“Não me importo com a ordem de preferência, porque sei que sem o Corinthians ele morreria”, diz, com concordância em gestos de Vicente, Marlene, a esposa, penteado impecável, pernas cruzadas, na bela residência do casal na rua Maria Eleonora, no Tatuapé. Um quadro de Nídia Malaret, de 72, cercado de arandelas, paira sobre a sala, destacado: é o rosto da jovem Marlene Matheus. “A ser exata, o Vicente se resume a uma palavra, Corinthians.”
Ela exagera, e sabe disso, mesmo porque Vicente Matheus, se hoje é um homem rico – “bem rico”, corrige ele, sorriso matreiro –, não deve a fortuna, ao contrário da celebridade, ao Corinthians, que preside, de resto, apenas desde 72, quando já não era exatamente um pé-rapado, mas próspero empresário.
O dinheiro escorre de três empresas, uma pavimentadora, uma pedreira e uma construtora, todas elas entrelaçadas. A pedreira, a mais antiga, foi fundada por Luís Matheus, pai de Vicente, espanhol que, no início do século, veio com a família tentar a sorte no Brasil. “Eu era o mais velho dos onze irmãos”, diz ele. “Mamãe teve tantos filhos, e com tão pouca diferença de tempo, que a primeira imagem que me vem dela é amamentando as crianças.”
A concorrência era árdua. “Eu procurava, às vezes, um par de meias, e quando o achava, ou ele estava rasgado ou um irmão tinha pegado primeiro. Reclamei tanto para mamãe que ela um dia me disse: ‘Olha, Vicentinho, hoje você está meio apurado, mas amanhã terá um armário cheio de roupas finíssimas’. Parece que ela acertou, não é Marlene?” – pergunta ele, apalpando a camisa de seda, uma entre tantas que tem no armário.
Acertou. As roupas de Vicente Matheus são tão numerosas quanto caras. Meias rasgadas? Já não as há. Nem paletós puídos, nem calças esgarçadas. Os ternos são feitos por Minelli, sobre quem Matheus despeja a definição de alfaiate mais chique de São Paulo, para contrariedade de Marlene, magoada, como explica, com certa atitude do cidadão, não o Rubens, técnico de futebol, é evidente, mas o alfaiate.
“A gente gastava, cada vez que encomendava ou comprava roupa, 100, 150 mil cruzeiros [R$ 25 mil reais em valores atualizados]. Num aniversário do Vicente, coisa de três anos atrás, peguei uma gravata (que aliás nada tinha de extraordinário) e disse ao Minelli: “Este é o seu presente, tá bom?” Mas ele não aceitou, respondendo que a gravata só saía dali vendida.”
Marlene Matheus diz ter ficado tão indignada – “Puxa, afinal, o Vicente, além de tudo, era amigo pessoal dele” – que de imediato o notificou de que poupara uma gravata ordinária mas perdera um freguês que tirava notas altas da carteira com a prodigalidade de um mágico extraindo coelhos da cartola. “Marlene” – diz Matheus, conciliador – “você leva as coisas muito a sério. Ele me telefonou um par de vezes dizendo que tinha simplesmente brincado com você”. Intocável na mágoa, Marlene, ainda que ao preço da queda de qualidade das roupas do marido, corta a tentativa de conciliação com um seco: “Não quero nem saber!”
E Matheus crescia. Não era mais um garoto que, aos dez anos, já com bastas sobrancelhas, consumia a infância entre a pedreira e o armazém do pai, sem tempo para estudo, embora não lhe faltasse ocasião para jogar futebol no subúrbio de Guaianeses. “Trabalhava que nem louco”, recorda. Aos 18 anos, foi ele quem firmou, com a Prefeitura de São Paulo, contratos que deram novos rumos à pedreira, ampliando-lhe os rendimentos.
Em 1934, casou-se com Ruth Pereira, e dois anos depois, senhor do próprio nariz, fundou a pavimentadora Vicente Matheus, hoje administrada pelos dois genros, Afonso Celso e Antônio Augusto. “Passo nela toda manhã, entre 9 e 9h30, e faço questão de assinar cheques, contratos, pedidos.”
A pavimentadora, conta ele, é abrangente: fabrica tubos de concreto armado para galerias, extrai paralelepípedos, brita pedras e produz concreto asfáltico e de cimento, tudo com o suporte das duas pedreiras do grupo, uma em Arujá, outra em Ribeirão Pires.
Não é de desprezar, o patrimônio de Matheus, que pretextando discriminação, não revela a quanto monta. Diz apenas, para dar ideia da fortuna, que lhe ofereceram há pouco 100 milhões de cruzeiros [R$ 16 milhões] por um terreno na Marginal do Tietê. “Nem para mim ele fala direito quanto tem”, lastima Marlene.
Conheceram-se em 1954, no Quarto Centenário de Sâo Paulo, ele diretor de futebol do Corinthians, ela dançarina de balé espanhol, ele na plateia, ela no palco, ele casado e pai de Abigail e Dalva, ela solteira, ambos, no entanto, corintianos convictos. “Ficamos amigos”, diz Marlene. “Tempos depois, Vicente ficou viúvo, eu me casei e descasei, e por fim, em agosto de 68, nos casamos.”
Vicente, conta ela, não é de dar flores ou de cantar a seu ouvido; doce como uma crônica de Rubem Braga, uma canção de amor, nem de rabiscar num guardanapo e passar-lhe, furtivamente, versos apaixonados. “Ele é aquele tipo consagrado de machão, que acha tudo isso bobagem. Tem outras formas de me demonstrar o amor: me dá do bom e do melhor, pôs as ações em meu nome, fez casa ao modo exato que escolhi.”
Nos tempos iniciais de casamento, viajavam muito, pois havia oportunidades, revela Marlene, alimentando Campeão e Pepita, os barulhentos cachorros do casal. “Passávamos três meses por ano na Europa”. A presidência do Corinthians chegou, as viagens europeias sumiram; restaram passeios, mais prosaicos, para a Ilha Porchat, Poços de Caldas ou Guarujá, lugares onde Vicente e Marlene têm casa ou apartamento.
O relógio de ouro, suposto Cartier, mostra a Vicente Matheus serem oito horas da noite. Toca o telefone, e Marlene pede à empregada, irmã, aliás, do jogador Geraldão, centroavante do Corinthians, que o atenda. “Quando o pego fico duas horas falando”. Desligado o telefone, Rosa, a empregada, informa que estão lembrando os dois da festa na casa do deputado Maluly Neto. Marlene agradece, e Vicente, mãos na gravata, hesita sobre o ato de tirá-la. Consulta Marlene, que aconselha a tirá-la, considera uns instantes e por fim – “todo mundo usa gravata no Maluly, Marlene” – a mantém, afrouxada. Aliviado, prepara, depois, uma dose de uísque, que seria sua bebida preferida, se não existissem as caipirinhas.
Deixada, cerca das 10 horas, a pavimentadora, Vicente Matheus vai ao Corinthians, onde o secretário lhe dá um maço de recortes das notícias que o envolvem e ao clube. É solicitado, então, como uma mulher bonita. Ora é o técnico Jorge Vieira que o procura, ora é a imprensa que lhe pede esclarecimentos, ora é um jogador que quer discutir novo contrato.
Almoça, sempre que possível, em casa. “Hoje não pude. Estive com o tal do Mak… Maksoud (é isso, não?) no hotel dele (uma enormidade, Marlene, deve ser o maior do mundo). Ele quer fazer uns serviços no estádio. Disse, aliás, a ele, que de manhã tinha sido fotografado por uma moça bonita da Vogue. Eu falei ‘o nome é (hesitei um pouquinho, porque não lembrava direito) Re… Regi… não – Renata’. O Maksoud sorriu e estalou os dedos e logo completou: ‘Castelo Branco’. Foi divertido.”
Após o almoço, Matheus retorna ao clube, onde fica até as 19 ou 20 horas, quando volta à casa para jantar. “Adoro mocotó”. Em outra sala, esta tão grande que parece maior que o Parque São Jorge, há uma mesa de troféus, outra com retratos familiares, e em destaque um quadro de uma criança com uniforme do Corinthians, assinado por Jânio Quadros, que não parece ser melhor pintor do que político. Pouco acima, uma moldura de um artigo da revista Placar no qual a redação, após chamá-lo de ignorante e ditador, o cumprimenta pela afronta ao presidente da Federação Paulista: “Vá em frente, presidente!”
A imprensa, de uma forma geral, não lhes arranca gargalhadas como uma boa piada. Marlene diz que foram tais e tão insistentes as “calúnias ao Vicente” nos jornais, que deixou de comprá-los. “Eu ficava muito nervosa quando lia mentiras, ele também, e então resolvi suspender a compra de jornais.”
No cesto da sala há, de qualquer modo, várias revistas, a maioria sobre o Corinthians. A ausência de jornais não impede, porém, que Vicente Matheus sentencie sobre assuntos melindrosos. “Não adiantam nada”, diz ele sobre as greves. “Os salários aumentam de um lado, os preços de outro, tudo fica na mesma. Veja se escreve o que vou tentar explicar: a solução é que o governo proíba o aumento de salários e de preços ao mesmo tempo; depois é só ver o que está caro demais e – zás! – passar uma tesoura.”
Interrogado sobre o topless, Marlene Matheus, com solicitude de irmã mais velha, intervém: “Aquela história de peito de fora, Vicente”. Feito o esclarecimento, o marido responde: “No meu tempo de garoto, havia bonde, e quando as mulheres se preparavam para subir neles a gente esticava os olhos, para alcançar um pedacinho da perna. Hoje, elas mostram tudo, e isso perde a graça da descoberta.”
Aborda-se Reza Pahlevi e Khomeini e Marlene outra vez intervém: “O aiatolá, Vicente, aquele de barba bem grande”. Diz ele: “Ah, sim, o barbudão. O problema é que o povo antigamente estava mal. Mas ele – o barbudão – não regula bem.”
O telefone volta a tocar. Novamente é lembrada a festa, e essa lembrança, agora, sugere insinuação de atraso. Vicente, bebido o último gole de uísque, levanta-se e vai para a garagem, onde estão os três carros da casa, uma Belina, um Landau e um Mercedes. Acaricia o Mercedes e diz que vale quatro milhões de cruzeiros [R$ 670 mil]. “A chapa, 7777, é o número do Corinthians.”
Pedem-lhe fogo, ele não tem. “Fumei bastante, agora parei de vez.”
Marlene o ouve e, já acomodada no Mercedes, na noite fria de outono, sorri.
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