E então uma canção me faz pensar nos amigos.
Está no Anthology 2 dos Beatles. Chama-se “Yes, It is”. A versão que me emociona é uma sublimemente tosca. John Lennon ainda não tem a letra pronta: enrola algumas frases.
Na primeira parte ali estão ele, seu gênio e seu violão, nada mais. Na segunda parte entram os amigos, Paul, George e Ringo, com suas vozes de apoio e seus instrumentos.
(Você devia parar de ler esse texto já e ouvir a música de que falo. No YouTube não tem essa versão, infelizmente, tampouco no Spotify. Mas está na Apple Music para quem assinar.)
A primeira vez que ouvi essa versão de “Yes, It is” tive vontade de chorar. Porque ali, naquela melodia ingenuamente romântica, tão típica dos Beatles jovens, está representada a força descomunal da amizade.
Sozinho, Lennon parece clamar por uma mão dos amigos. Ela vem e se instala então um som coletivo que deslumbra.
A amizade tudo pode. A amizade é maior que tudo. Maior que a vida e maior que a morte.
Montaigne. Acho que foi Montaigne que escreveu que uma amizade é como a união de dois tecidos tão bem feita que você sequer nota a costura. Montaigne sofreu barbaramente quando morreu seu melhor amigo. Registrou isso em seus clássicos Ensaios.
(Atenção: atribuí a frase acima a Montaigne, mas posso estar enganado. Sempre posso estar enganado. É um direito de escritores baratos como eu.)
O amigo nos levanta. O amigo nos suporta. O amigo nos conforta quando temos uma decepção amorosa ou profissional. O amigo sabe falar e, mais que tudo, sabe ouvir. O amigo traz alento quando tudo parece tão sem graça e tão sem sentido.
O amigo não compete conosco. O amigo ganha em nossas vitórias e perde em nossas derrotas.
Um cínico inspirado certa vez disse que não há amigo que secretamente não se alegre quando algo de ruim nos acontece. Reconheço aí uma frase inventiva e de efeito, mas nada além disso. O amigo é a negação da sentença do cínico inspirado. Sem amizade a vida seria simplesmente insuportável.
Deus deveria ser proibido de nos tirá-los. Os nossos amigos deveriam estar protegidos de todos os males. Deveriam viver felizes para sempre. Ouso dizer que não deveriam sequer envelhecer. Um amigo perdido é uma dor que lateja eternamente.
Penso agora no Marcão. Não tinha nem vinte. Inteligente, sensível, meigo. Ruivo e cheio de sardas. Tinha sido namorado da Laura, uma morena esplêndida. Marcão. Sabia enrolar fumo com grande categoria.
Um dia avisaram: ele apontou um revólver para a cabeça e disparou. (E então me ocorre uma outra canção do Lennon, já da fase adulta. “Hapiness is A Warm Gun”. Felicidade é uma arma quente.)
Para o Marcão, não sei se a arma quente foi a felicidade. Foi a retirada, com certeza. E ele não tinha nem vinte.
Durante muito tempos nós, os amigos, nos perguntamos tolamente por quê. Ainda hoje, anos depois, de vez em quando falamos dele.
Marcão. Sua memória esgarçada nos traz sorrisos tristes e questões antigas para as quais não haverá jamais resposta. Marcão de alguma forma viveu nos amigos que o amaram, entre os quais um certo escritor barato. Por nossos olhos cansados e envelhecidos ele pode ver a miserável beleza de cada passo da longa caminhada sobre essa terra.
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