Das primeiras novelas até o quarteto napolitano, a esquiva Elena Ferrante conquistou merecidamente o status de superestrela devido ao caráter compulsivamente legível e viciante de sua escrita. Duas autoras de “The Ferrante Letters“, Sarah Chihaya e Merve Emre, nos apresentam a Ferrante e recomendam os melhores livros da escritora.
1# TRILOGIA A AMIGA GENIAL
Todos os romances de Elena Ferrante são narrados por mulheres que têm alguma relação com a literatura, isto é, que têm filhos de certa idade e, na maioria das vezes, são de Nápoles, Itália. Ambas são características da própria Ferrante.
O romance em quatro volumes que é “A Amiga Genial” explora isso de forma muito sedutora. A narradora também se chama Elena, embora seu apelido seja Lenù, e se enquadra nesses parâmetros: ela é de Nápoles e é uma escritora. No primeiro volume, acompanhamos Lenù e sua amiga Lila durante a infância. Ambas crescem em um bairro pobre, mas são meninas ambiciosas. E é basicamente isso. Esse é o enredo. Mas o cerne do livro descreve o bairro, as pessoas que lá vivem e o momento político na Itália do meio do século em que se encontram.
Basicamente, então, o enredo do livro gira em torno da educação e de como ela coloca essas duas meninas, e depois mulheres, em trajetórias totalmente distintas. Uma das cenas mais emocionantes é quando compram uma cópia de “Mulherzinhas”, de Louisa May Alcott. Elas o leem juntas em um pátio e ele se torna o livro delas. Fica bem claro que essa é uma amizade que é constantemente tocada e mediada pelo literário — tanto pela maneira como pode unir duas pessoas em uma visão compartilhada do mundo quanto pela forma como pode afastá-las. Por exemplo, Lenù tem a chance de estudar e cultivar seus interesses literários de forma muito institucionalizada e culturalmente valorizada, enquanto Lila tem que trabalhar na sapataria de seu pai.
Curiosamente, o livro em si começa anos depois, com o desaparecimento de Lila – já adulta. Lila leva tudo consigo, e não resta nenhum vestígio seu. Nenhuma roupa, nenhum livro. Ela se corta de todas as fotografias. E Lenù começa a escrever o romance que estamos lendo como um ato de vingança. Torna-se uma maneira de aprisionar sua amiga. É como se ela dissesse: “Vamos ver quem vence desta vez.”
E por que esse livro deve ser lido? Acredito que uma das coisas mais interessantes dele é que somos motivados, antes de mais nada, a questionar o que é amizade. Porque amizade não é algo sempre bonito — na grande parte do tempo. É isso que adoramos em “A Amiga Genial”. O livro começa mostrando como as crianças pequenas podem ser cruéis umas com as outras, mesmo que se amem. Elas são mais cruéis com aquilo que mais amam. E a amizade em Ferrante é tanto a melhor coisa quanto a pior: a pessoa que te ama pode te ferir mais do que qualquer outra porque supostamente não deveria te ferir. E penso que, em sua visão de amizade — e é por isso que é significativo que o primeiro livro e o quarteto se chamem “A Amiga Genial” — ambas são a amiga genial uma da outra.
Ainda sobre a crueldade, as crianças muitas vezes se fascinam umas pelas outras por razões que não conseguem sequer explicar a si mesmas, e essa fascinação as leva a criar vidas interiores uma para a outra que são fantásticas, até mesmo míticas — vidas que tomam emprestadas da literatura porque, para algumas crianças, esse é o principal exemplo de outras mentes. Uma das coisas que Lenù faz com Lila é mitologizá-la e a sua amizade — em parte para que ela possa se mitologizar. Isso recua nos livros posteriores quando estão mais velhas e já se viram em momentos de vulnerabilidade.
É um processo mais longo de se verem uma à outra de fato. E, enquanto isso, temos a sensação de que Lila talvez tenha visto Lenù antes, leva todos os quatro livros para Lenù ver Lila. Há uma opacidade nas pessoas quando você é criança. Você não consegue entrar completamente em outra pessoa. É como em “Reparação”, de Ian McEwan, quando Briony, a protagonista criança, tem uma espécie de conversa à la Virginia Woolf consigo mesma sobre se outras pessoas existem ou não. As outras pessoas têm mentes, ou são somente autômatos? Lembro-me de estar muito preocupada com alguma coisa assim quando era criança. Como é ser outra pessoa? Como elas são por dentro? Elas pensam como eu penso? O primeiro volume de “A Amiga Genial” é muito assim: como é ser Lila? Como é pensar como Lila?
E parece que Lenù nunca consegue se livrar completamente desse impulso. Por isso, o primeiro livro começa com ela dizendo “Vamos ver quem vence desta vez.” Ela pensa: vou prendê-la, vou fixar o seu pensamento ou o seu ser nestas páginas, de modo que, mesmo que ela tente se apagar, a minha escrita conterá mais do que apenas os rastros que ela deixou para trás. Será um acerto de contas completo com o mundo que Lila criou para ela, para as duas.
Falemos um pouco da ordem dos livros. O primeiro começa com a infância delas, quando têm seis ou sete anos, e termina com o casamento de Lila aos 17 anos. O segundo livro retoma imediatamente após isso, na noite de casamento de Lila. Ele começa recapitulando o primeiro livro, como se estivéssemos assistindo a um novo episódio de uma série de televisão. Isso é feito de uma maneira refratada, onde ouvimos novamente através do que Lila disse sobre sua noite de núpcias a Lenù mais tarde. No final do primeiro livro, vemos o casamento com os próprios olhos de Lenù, e no início do segundo livro, vemos pelo lado de Lila.
O segundo livro conta a história do casamento de Lila com um homem que a maltrata, com quem ela essencialmente se casou por dinheiro no primeiro livro: é o fim do romance para Lila. Ela tem um casamento terrível; ela tem um caso com Nino, por quem Lenù tem sido apaixonada desde que eram crianças. Lila pensa que terão uma vida intelectual idílica, vivendo juntos, escrevendo juntos, ela ajudando-o em sua carreira. Mas Nino a deixa após algumas semanas.
Ao mesmo tempo, Lenù vai para a faculdade. Lá, ela se sai incrivelmente bem. Ela conhece um homem de uma família muito bem conectada e estabelecida de intelectuais burgueses e casa-se com ele. Lila permanece no bairro e não obtém sucesso, por medidas externas. Lenù deixa o bairro e sai completamente de Nápoles. Aos olhos da sociedade, o seu percurso é ascendente. Ela escreve seu primeiro livro e começa a fazer um nome para si mesma como uma escritora que escreve sobre mulheres a partir da perspectiva de uma mulher e não tem medo de escrever sobre sexo ou desejo.
Acredito que devemos perceber tanto a narradora, Lenù enquanto narradora, e as personagens, Lila e Lenù, agindo de maneiras que poderíamos julgar como mesquinhas, descontroladas ou baixas. E, no entanto, são muitas vezes coisas que todos nós já fizemos; coisas que desejávamos não querer fazer.
Já no terceiro livro, História de Quem Foge e de Quem Fica, temos Lenù confortavelmente estabelecida como uma intelectual burguesa; ela é casada e tem dois filhos. O terceiro livro é sobre ela ter conquistado tudo, mas sentindo que perdeu seu senso de identidade como uma pessoa desejável e desejosa e seu senso de privacidade no processo.
Ao mesmo tempo, Lila volta para o bairro e se envolve cada vez mais na política local, que também começa a intersectar com a política nacional da Itália nos anos 70. Nesse livro vemos, tanto no doméstico quanto no front político, como eventos realmente básicos do dia a dia — como fazer compras, trocar fraldas — tornam-se ocasiões importantes, ou de alguma forma conseguem escalar para preocupações sociais de grande alcance. Decisões individuais parecem ter externalidades massivas, mesmo que apenas imaginativamente. De repente, você está de volta ao bairro onde as meninas cresceram, mas o bairro parece encapsular o mundo — da mesma forma que na casa de Lenù, uma briga doméstica parece encapsular tudo o que acontece entre homens e mulheres.
Uma das coisas que amo nesses quatro livros é que não há nada didático ou pedante neles. E é por isso que é possível para tantas pessoas lê-los; é por isso que minha mãe adora esses livros. Ela não liga para a política italiana ou para o feminismo dos anos 70. Embora ela seja exatamente dessa geração, ela não está interessada na política trabalhista.
Quando chegamos ao quarto livro, não acho que ele seja necessariamente bom. Acho que há grandes trechos de escrita em todos os livros que não são muito bons ou que poderiam ser reduzidos. Mas, no quarto, o final vem abruptamente. No primeiro livro, a maneira como Lila e Lenù se conectam é brincando com suas bonecas. E Lenù convence Lila a deixar sua boneca, que é muito mais bonita do que a boneca de Lenù, cair em uma grade. Elas tentam encontrar as bonecas e não conseguem. O quarto livro termina após o desaparecimento de Lila, com um epílogo chamado ‘Restituição’. Um dia, Lenù encontra um grande pacote do lado de fora de sua porta. Contém as bonecas de 60 anos atrás. E então, se você ler o trabalho dela após ler o quarteto, começa a ver essas bonecas e crianças perdidas em todos os lugares.
A outra coisa que acontece no quarto livro é que Lila é mãe de uma menina, uma criança incrivelmente talentosa, de olhos escuros e olhar perspicaz, que desaparece. E ninguém consegue encontrá-la. Lila torna-se uma mulher enlouquecida, vagando pelas ruas, procurando por sua filha, e nunca, nunca consegue encontrá-la. E isso faz com que tudo o que aconteceu nos livros um, dois e três de repente pareça brincadeira de criança. A tragédia absoluta de não só perder um filho, mas não ter ideia do que ocorreu com essa criança, ilumina a decisão de Lila de desaparecer no início do primeiro livro.
2# UMA NOITE NA PRAIA
O segundo livrodessa lista, “Uma Noite na Praia”, é um livro infantil — supostamente, pelo menos.
E por que “supostamente”? Porque ele é realmente aterrorizante. Quando entrevistei a autora para um artigo que estava escrevendo, ela me disse que o escreveu para a filha de uma amiga. Essa menininha acabara de ganhar uma irmã e se sentia deslocada na família.
O livro é sobre uma boneca que é deixada na praia à noite por sua dona, uma menina que conseguiu um novo gatinho e está muito mais interessada em brincar com o gatinho do que em brincar com a boneca. Muitas coisas cruéis acontecem com a boneca na praia à noite. Ela quase é queimada; parte de seu corpo derrete. Há um homem com um bigode espesso que coloca um fio dourado na boca da boneca e a força a dizer seu nome.
Ele termina com um ato de restituição, onde a pequena boneca é salva pelo gatinho que a substituiu e devolvida à sua dona. Aliás, essa boneca perdida pode muito bem ser a boneca que se perde em “A Filha Perdida”, que é justamente o terceiro livro dessa lista.
3# A FILHA PERDIDA
“A Filha Perdida” conta a história de uma professora de literatura de 50 anos chamada Leda que se presenteia com melancólicas férias na praia, onde vê uma mãe e filha brincando juntas na areia. As próprias filhas de Leda já estão adultas, e ela se vê, instantaneamente e de forma ilógica, atraída com uma espécie de ciúme diante da conexão entre essa mãe e a filha. A menininha deixa sua boneca na praia, e Leda pega a boneca e observa a criança sofrendo com sua perda, observa toda a família buscando freneticamente pela boneca na areia. Ela passa o resto das férias planejando encontros com essa família para ver o que pegar a boneca fez com o relacionamento da criança com a mãe, que está se desgastando sob a pressão desta boneca perdida. Ou melhor, a boneca perdida está trazendo à tona as tensões que já existiam na família. Enquanto isso, ela tem estado com a boneca, observando a boneca… Leda está narrando do ponto de vista de uma mulher pós-família. Ela está divorciada. Suas filhas cresceram e saíram de casa, e ela não terá mais filhos.
E suma, Leda é envolta por um total sentimento de solidão. Ela se pergunta: “O que eu poderia fazer para ser alguém importante na vida de outra pessoa?” Ou, quais outras formas existem, além de ter filhos e romance, de ser importante na vida das outras pessoas? Pegar a boneca torna-se um pequeno e equivocado gesto em direção a ser importante, em direção a pertencer. Mas isso lembra que pertencer nunca é algo fácil. Pertencer tem consequências terríveis.
Esse talvez seja o tema de todo o trabalho de Ferrante. Pertencer em amizade, ou amor, ou família — e seus dolorosos efeitos colaterais.
4# DIAS DE ABANDONO
Vamos prosseguir para o romance “Dias de Abandono”.
Ele é o segundo romance curto que Elena Ferrante escreveu antes do quarteto. É o livro mais sufocante que consigo pensar — um romance incrivelmente claustrofóbico, pois é literalmente sobre uma mulher que está presa em seu apartamento com seus filhos e seu pastor alemão morrendo.
Olga, a narradora, descobre que seu marido a trai. Ele a abandona, e ela deve enfrentar sua dor e o que a traição dele fez com ela, como a transformou. E ela deve cuidar de seus filhos no meio de tudo isso. Estar presa em seu apartamento, sem ter para onde ir, é a expressão exterior do que deve acontecer — uma confrontação necessária com seu eu mais profundo. Não há nada ali além de sua própria ansiedade. E há outros personagens — há as crianças, o cachorro triste, o vizinho.
Há muitas cenas dela e de sua filhinha se maquiando diante de espelhos para parecerem bonecas. Há uma fixação com maquiagem e autoformatação no romance. É interessante que elas façam isso mesmo estando presas no apartamento. Se não vão a lugar nenhum, para quem é isso? Provavelmente, é um exercício: o exercício do que significa tornar-se mulher.
O interessante sobre a claustrofobia é que é uma claustrofobia de desintegração. É como estar na mente de alguém enquanto essa mente está se desintegrando completamente. Ela está se perguntando: “O que sou sem meu marido? O que é uma mulher sem ninguém para vê-la?”
O livro também é o exercício fictício de estar presa em sua casa, no eu que você constituiu. É o oposto de invasão domiciliar; é o oposto de como a maioria das ficções funciona. Há algo tão interessante em estar com esse personagem nesse espaço único. Essa imagem de desintegração — conforme você se dispersa pela casa, o que acontece? Ela se move inquieta; há algo errado com as fechaduras e ela não consegue sair. O cachorro foi envenenado e está morrendo.
Quando as pessoas me perguntam com qual livro de Ferrante deveriam começar, eu digo para lerem “Dias de Abandono” porque é curto e intenso, e se você gostar, sabe que vai gostar de Ferrante. É um livro maravilhosamente comovente. É um destruidor de vidas. Mas para mim, isso é uma coisa boa.
O que é extraordinário na narrativa é que só depois que o cachorro morre e as crianças começam a tentar entrar no quarto com o cachorro morto é que Olga começa a se recompor. Uma versão dela morreu com o cachorro e isso a libertou. Acredito que somos libertados da claustrofobia de sua desintegração pela morte daquela antiga esposa, da antiga amante, da antiga mãe. É uma vez que esse “eu” está morto que algo como o futuro se torna imaginável. Estar trancada naquele quarto dá a sensação de que o tempo está desacelerando nas etapas finais da auto-aniquilação. Você não pode imaginar a próxima versão de si mesma até que aquela que foi envenenada e está morrendo morra e seja assimilada no presente apenas como um espectro, uma sombra ou uma lembrança.
5# FRANTUMAGLIA: OS CAMINHOS DE UMA ESCRITORA
Eu não queria ler “Frantumaglia” quando foi lançado. É uma coleção de entrevistas, cartas, pequenos ensaios, uma espécie de pedaços e fragmentos. Eu não queria lê-lo porque eu não tinha interesse na questão de quem é Elena Ferrante. Eu não queria ler Frantumaglia porque não queria ver o que ela diria sobre si mesma e sobre seus livros. Mas então eu li para escrever “The Ferrante Letters”, e eu amei. Algumas de suas melhores escritas estão lá. Ferrante tem um verdadeiro dom de dizer o suficiente para desbloquear coisas para você, mas não tanto que você deseje que ela pare. Ela desenha algumas linhas, mas não todas. Esse é um dom raro para um autor, ou para qualquer pessoa.
No fundo, acho que ela é uma encantadora descritora de mitos. Para mim, as partes mais incríveis de Frantumaglia são quando ela está contando a história de Ariadne ou a história de Dido. Ela tem uma fixação com mulheres tecelãs, e isso para mim é a linha mais interessante do livro. Ela afirma que sua mãe era uma costureira, e há esses trechos incrivelmente luminosos descrevendo o que era acompanhar sua mãe à loja de tecidos para comprar tecido e vê-la ajustar roupas para outras mulheres. Surge um paralelo entre fazer vestidos – tecendo tecidos juntos – e fazer histórias – tecendo a linguagem juntos. Você vê isso em suas releituras de mulheres tecelãs que usam tecido não para fazer vestidos, mas para criar culturas narrativas nacionais inteiras.
Eu não sentei e li Frantumaglia de uma vez; eu entrava e saía dele. Eu acabei lendo o livro todo, mas só depois de experimentar pedaços dele. Algumas das entrevistas são simplesmente insuportavelmente longas, mas algumas delas eu realmente gosto porque gosto de quão indireta ela é. Ela é bastante tentadora e às vezes até um pouco rude, mas também engraçada, o que torna a leitura de suas entrevistas uma alegria. Ela sempre mantém suas limitações, suas fronteiras. Ela sempre diz exatamente o que quer dizer. Ela é um modelo incrível para táticas de evasão. Mas ela faz isso de uma forma que é tão habilidosa. E todas as entrevistas têm coisas interessantes nelas, mas nem sempre são respostas às perguntas.
O texto original foi publicado no site FiveBooks.