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Lições de vida com a Odisseia de Homero

Você provavelmente já ouviu a palavra odisseia. Atualmente, nós a atribuímos a uma jornada, a um caminho repleto de aventuras e de eventos insperados. Mas a palavra grega da qual esse termo deriva significa simplesmente “a história de Odisseu”.

E, se uma palavra que significa “a história de Odisseu” converteu-se em uma que abrange as aventuras previamente mencionadas, é porque o poeta grego Homero, que viveu muito antes de Cristo, criou uma história na qual esses eventos possuem um papel predominante.

Odisseu – a quem você pode conhecer também pelo nome Ulisses, conforme traduzido para a língua latina – foi um dos principais heróis da mitologia greco-romana. Há inúmeros mitos relacionados ao seu nome e, além de ter protagonizado a Odisseia, foi também um dos heróis mais importantes e queridos que figuram na Ilíada, poema épico que a precede e cuja narrativa gira em torno da cólera do guerreiro grego Aquiles e de sua luta mortal com o troiano Heitor.

Se a Ilíada tem em Aquiles e em sua cólera seu principal elemento, a Odisseia fala sobre a volta do herói à sua pátria, Ítaca, após longos anos em terras estrangeiras, vivendo as mais diversas aventuras e desventuras, e buscando incansavelmente o caminho para casa. Amaldiçoado por um deus, Posêidon, Odisseu conta com a ajuda da deusa da sabedoria, Atena, nesse percurso; e é com a ajuda de Atena que consegue voltar, destruir os pretendentes de sua fiel esposa, os quais aborreceram-na e conspiraram pela morte de seu filho durante todos esses anos, e mais uma vez assumir controle sobre o seu mundo.

Por que, você poderia perguntar, essas coisas importam, mesmo tantos anos depois? Por que esses poemas sobreviveram e ainda são amados e celebrados?

De acordo com a acadêmica Kathryn McClymond, docente da George State University, isso ocorre porque os grandes mitos são muito mais do que histórias capazes de nos oferecer um momento de entretenimento: eles tinham grande peso em suas culturas, explorando o mundo e dando significado à vida cotidiana dos povos antigos. E, milhares de anos depois, inúmeros deles ainda se comunicam com a nossa experiência humana universal:

As grandes mitologias refletem experiências particulares e visões do mundo de povos em específico, só que, ao mesmo tempo, elas contém elementos que falam sobre a experiência humana, transcendendo noções de tempo e de espaço.

E o que, exatamente, a Odisseia e a experiência de Odisseu podem nos ensinar? Pretendemos, nesse texto, contextualizar algumas coisas a respeito de sua trama e mencionar os conselhos, lições e pequenos ou grandes raios de sabedoria que ela nos oferece.

1# A INTELIGÊNCIA E A ASTÚCIA SÃO ESSENCIAIS

Os gregos valorizavam as habilidades e qualidades que permitiam o triunfo sobre a violência, o caos e a agressão. Odisseu nem sempre é um homem bom, mas é um homem imensamente inteligente, corajoso e ardiloso, que aprende com as próprias experiências.

… E é por essa razão, e apenas por ela, que é capaz de sobreviver e de retomar o controle do seu lar e da sua família.

Vejamos como é introduzido ao leitor, ainda nos primeiros parágrafos do poema:

Fala-me, musa, do homem de mil ardis que tanto vagueou

Depois que de Troia destruiu a cidadela sagrada.

Muitos foram os povos cujas cidades observou,

Cujos espíritos conheceu; e foram muitos no mar

Os sofrimentos por que passou para salvar a vida.

Enquanto temos na Ilíada um herói poderoso, audacioso e cruel, Aquiles, dotado de orgulho e ódio destrutivo, na Odisseia temos um tipo diferente de protagonista: ardiloso, frio e mestre de estratagemas, “o heroísmo de Odisseu é mais complexo”, afirma McClymond, “pois suas qualidades são diferentes das tradicionais, tendo ele uma inteligência fértil e a disposição para mentir para conseguir o que quer”.

Odisseu é um mestre em intercalar a verdade e a mentira. Seus esquemas e mentiras o levam a triunfos heroicos, preservam a sua vida e, em suma, são o principal motivo pelo qual Atena, a deusa da sabedoria, o privilegia continuamente ao longo da história e busca promover, sem cessar, o seu sucesso.

2# … E MAIS IMPORTANTES DO QUE TODO O RESTO

Alguns acadêmicos colocam Atena, deusa da sabedoria e defensora de Odisseu, como a mais importante representante da razão e da civilização. Já Posêidon, deus dos mares, seria como que um representante das emoções selvagens e das forças da natureza. Já sabemos quem foi, nesse caso, que triunfou no final, não é mesmo?

Enquanto a Ilíada celebra a coragem e a bravura cruas, na Odisseia temos um amadurecimento dos ideais homéricos e, muito possivelmente, dos da sociedade grega em si.

Por que digo isso? Porque, na cena em que Odisseu faz uma breve passagem pelo submundo, ou o mundo dos mortos, reencontra Aquiles, e este praticamente demonstra arrependimento por ter optado por morrer na guerra, em suposta glória, em vez de viver serenamente, buscar a felicidade em um ambiente doméstico e morrer em paz.

Em culturas que sucederam a grega, Odisseu passou a ser visto sob um viés mais negativo, e aos poucos converteu-se mais em um anti-herói do que em um herói em si. Suas enganações e violência suprimida deixaram de ser tidas como algo positivo, por exemplo, em Roma. Na Eneida de Virgílio, que narra a história do herói troiano Eneias, Odisseu ocupa um papel que já não é nem um pouco lisonjeiro. Mas, na Odisseia em si, os seus dolos são considerados algo positivo, como podemos ver pelas palavras dirigidas por Palas Atena ao seu protegido:

Interesseiro e ladrão seria aquele que te superasse

Em todos os dolos, mesmo que um deus viesse ao teu encontro!

Homem teimoso, de variado pensamento, urdidor de enganos:

Nem na tua pátria estás disposto a abdicar dos dolos

E dos discursos mentirosos, que no fundo te são queridos.

Mas não falemos mais destas coisas, pois ambos somos

Versados em enganos: tu é de todos os mortais o melhor

Em conselho e em palavras; dos imortais, sou eu a mais famosa

Em argúcia proveitosa. Mas tu não reconheceste

Palas Atena, a filha de Zeus – eu que sempre

Em todos os trabalhos estou ao teu lado e por ti velo”.

3# … MAS VOCÊ DEVE SABER OCULTÁ-LAS

Bom, há muitos episódios da Odisseia que valem a pena ser comentados, mas um deles ocorre ainda no início e é o causador de muitos dos problemas de Odisseu. E por quê? Porque trata-se bem do momento em que Odisseu se esquece que uma parte essencial da astúcia consiste, é claro, em saber que há momentos em que você não deve tentar triunfar sobre ninguém ou mostrar a própria inteligência. Não seja orgulhoso, seja prudente.

Falemos agora do episódio em si.

Odisseu e seus companheiros são capturados pelo ciclope Polifemo, filho do deus dos mares, Posêidon. Polifemo, um gigante de um olho só, não conhece lei alguma – muito menos a lei da hospitalidade, que o obrigaria a acolher Odisseu e seus homens como convidados e ajudá-lo a retomar o seu caminho. Ao contrário disso, ele os mantém em cativeiro e põe-se a comê-los, dois a dois.

De início, Odisseu se sai muito bem. Ele afirma chamar-se Ninguém – e, quando coloca em prática o plano de cegar o gigante e escapar, agarrando-se às ovelhas dele, com os marinheiros que lhe restaram, isso se prova algo inteligentíssimo, pois os demais ciclopes, ao ouviram os gritos de Polifemo de que “Ninguém o feriu”, ignoram-no impacientemente.

Bem-sucedido, Odisseu está prestes a partir com seus homens quando seu orgulho o possui por completo. Conforme se distancia da ilha do ciclope, é incapaz de resistir à ideia de gabar-se de seus feitos. Eis a cena na qual isso se dá:

Mas quando chegamos ao dobro da distância anterior,

Chamei pelo Ciclope. E à minha volta os companheiros

Tentavam impedir-me, falando-me com doces palavras:

“Imprudente, por que queres provocar a ira de um selvagem?

Ainda agora ele atirou um projétil ao mar que fez a nau

Voltar à costa! Pensamos que íamos morrer ali!”

Assim falaram, mas não persuadiram o meu coração.

Dei-lhe então esta réplica, enfurecido que estava:

“Ó Ciclope, se alguém algum dia te perguntar

Quem foi que vergonhosamente te cegou o olho,

Diz que foi Ulisses, saqueador de cidades,

Filho de Laertes, que em Ítaca tem seu palácio”.

O resultado? Tendo revelado a sua identidade, Odisseu é amaldiçoado pelo ciclope e por seu pai, o divino Posêidon, que trabalha sistematicamente para dificultar o seu retorno à Ítaca, e lhe coloca todo tipo de dificuldade no caminho.

Não tente triunfar sobre os outros constantemente. Saiba o momento de privar-se de luz, de brilhar apenas nas sombras. O fato de que não suportava a ideia de que ficasse desconhecida a identidade e a fama de quem derrotou o ciclope foi o pior entre os erros de Odisseu.

4# CERQUE-SE DE PESSOAS INTELIGENTES TAMBÉM

Basta sermos inteligentes enquanto as pessoas ao nosso redor, em quem devemos depositar, em determinados momentos, a nossa confiança e a nossa sobrevivência, não o são? A história de Odisseu prova que não, não basta.

Antes de mais nada, examinemos a sua experiência com os seus próprios companheiros, que, embora em alguns momentos demonstrem alguma sabedoria prática, pode-se dizer que são, na maior parte do tempo, perfeitos tolos. Durante boa parte da Odisseia, inclusive, Odisseu é obrigado a livrá-los de enrascadas, e a pouca prudência de seus homens lhe custa tempo e, é evidente, energia.

Há muitos momentos dessa espécie na Odisseia. Em um deles, após receber de Éolo, o deus dos ventos – cujo principal poder consistia em despertar e acalmar os ventos – uma sacolinha de couro com todos os ventos dentro, a fim de melhor conduzi-lo a Ítaca, Odisseu a mantém ao seu lado até o momento em que não aguenta mais e adormece. Então, pensando tratar-se de um tesouro secreto, os seus homens abrem a sacola e libertam os ventos, conduzindo sua embarcação de volta para a ilha de Éolo, que recusa-se a ajuda-los novamente. Em outro, os marinheiros de Odisseu comem o gado sagrado de Hélio, o deus do Sol, causando a ira deste.

E, é claro, temos o episódio mais curioso de todos, em que, ao chegarem à ilha da solitária e intempestiva bruxa Circe, bebem em demasia, se comportam de maneira inapropriada e são, por isso, transformados pela bruxa em porcos (com “cabeça, voz, cerdas e aspecto de porcos, mas o espírito inalterado: permaneceu como era”, isto é, conservando a inteligência de seres humanos). É Odisseu quem tem que resgatá-los, tornando-se amante da feiticeira, que depois disso mostra-se bastante maleável e o ajuda em seu percurso de volta para casa.

5# … ESPECIALMENTE EM RELACIONAMENTOS AMOROSOS

Sabe aqueles homens que temem a inteligência de suas mulheres? O herói da Odisseia não é um deles –  ao contrário, ele se casa com uma das mulheres mais astuciosas de sua terra, Penélope, e isso é uma de suas escolhas mais sábias. Porque, ardilosa como o marido, mas fiel à sua memória, é Penélope quem mantém os seus pretendentes à distância enquanto aguarda o seu retorno.

Entre as mulheres dos gregos em Tróia, temos exemplos negativos, tais como a bela Helena, cuja traição dá início à guerra, e sua irmã, a vingativa Clitemnestra, esposa do mais poderoso  entre os reis gregos, Agamêmnon, a quem recebe muito carinhosamente… Com uma facada.

Penélope, que é prima das duas, é o oposto: ela é o exemplo de uma mulher confiável, sábia e dotada de qualidades consistentes com a de uma rainha.

Você já ouviu falar no tear de Penélope? Provavelmente sim, mas a resumiremos de qualquer maneira: Penélope diz aos seus pretendentes que fez uma promessa, e que antes de escolher, entre eles, um marido, é preciso que teça uma mortalha ao seu sogro, Laertes. Durante mais de três anos, ela tece em seu grande tear durante o dia e desmancha a mortalha à noite, à luz de tochas. Depois de descoberto o seu engodo, continua a tecer estratagemas que a auxiliem a evitar um segundo casamento.

Para encerrarmos, podemos citar as palavras de Elizabeth Vandiver, professora do Whitman College e estudiosa daOdisseia: “Odisseu é polumêtis, um homem de muitos estratagemas. Sua esposa possui a mesma natureza que ele, sendo uma companheira respeitável”.

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Camila Nogueira Nardelli
Camila Nogueira Nardelli
Leitora ávida, aficcionada por chai latte e por gatos, a socióloga Camila escreve sobre desenvolvimento pessoal aqui no El Hombre.