Sem beijo não há nada. Quando um casal não se acerta no beijo, a causa está perdida. O beijo, muito mais que o sexo, define o relacionamento. Bons beijos dão bons romances. Beijos ruins dão romances ruins. Não existe sexo excitante com beijo medíocre.
Acho poético o código das marafonas. Elas entregam tudo em troca de moeda, mas não o beijo. O sexo pode ser comércio. O beijo, nunca.
Um relacionamento floresce quando dois querem se beijar com volúpia molhada de um convalescente que depois de uma longa temporada na clausura sai enfim à rua. E você percebe que alguma coisa mudou, e para pior, quando perde a vontade de colar seus lábios aos dela.
A falência do beijo antecipa a do amor.
Beijo. Não sei por que decidi escrever sobre beijo. Ou melhor: sei. É que passei outro dia, depois de muito tempo, pelo lugar em que ia dançar nas noites de domingo. Mingau. Era assim que chamávamos aquelas festas ingênuas de domingo que começavam às 8 e terminavam à meia-noite. Nem sei se existem ainda.
Vejo agora que escrevi dançar. Só posso descrever os passos desgovernados que eu dava no salão como dança à luz de uma generosa licença poética ou de uma espantosa demonstração de auto-indulgência.
É interessante como a vista de certos lugares instantaneamente reaviva lembranças que nos pareciam mortas. Ao ver a fachada daquele salão, retrocedi anos. E foi então que vi ali dentro do salão aquela menina cuja pele tão clara contrastava notavelmente com os cabelos negros como piche.
Márcia tinha o ar de inocência maliciosa que é tão genuíno em meninas quando estão se transformando em mulheres. Um certo ar que, depois, nem mesmo o cálculo mais fino consegue reproduzir. Bandeira tem um verso lindo sobre isso: o precário frescor da pubescência.
Outro dia escrevi sobre os olhos da Natasha de Tolstoi, aqueles olhos de estrela que as mulheres só têm na era da inocência. Márcia tinha olhos de Natasha quando nos encontramos no acaso de um salão.
Jamais esqueci a música que tocava quando tirei Márcia para dançar. O refrão dizia: I am so happy. Eu também estava tão feliz ali, aos 15 anos, com a deusa daquele salão de adolescentes.
Terminada a música, nos encostamos em uma pilastra. E então nós parecíamos aquele casal do quadro de Klimt chamado O Beijo. Para ser honesto, acho que nossas línguas nem sequer se encontraram, mas que importa? Foi meu primeiro beijo.
Lembro, nos detalhes, as palavras que disse a ela em minha voz titubeante de garoto que quer parecer homem. Foram consideradas engenhosas por meus amigos e, depois, descaradamente copiadas nas tentativas de ganhar um beijo de boca, quase sempre com êxito.
Falei com Márcia uma ou duas vezes depois daquele triunfo espetacular. Uma demorada temporada no hospital me impediu de tentar repetir o beijo. Numa das vezes, estava exatamente no hospital. Acho que alguém, provavelmente minha mãe, lhe deu o telefone do hospital quando ela ligou para minha casa.
O som de sua voz me confortou como a visão de um amigo numa terra estranha. Depois, não restou nada, senão uma lembrança que aos poucos foi se esgarçando até ressurgir, como que por milagre, restaurada muitos anos depois, quando passei pela frente do velho salão. O telefone jamais voltaria a tocar em nome de Márcia.
Uma velha cigana, num romance de Hemingway, diz a uma jovenzinha pela primeira vez apaixonada que, na vida de uma mulher, há três ocasiões em que a terra treme.
Num romance de Norman Mailer alguém, mais parcimonioso, diz que há uma única vez na vida de uma mulher em que ela olha para um homem e um macaco parece saltar dentro de seu estômago.
Para um homem a conta não é diferente. A terra não tremeu exatamente para mim naquela noite em que tive Márcia nos braços e dei meu primeiro beijo. Mas de alguma forma saí daquele beijo diferente do que eu tinha sido até então.
Me pergunto o que a vida fez de Márcia. Proust escreveu que as ruas e os lugares infelizmente são fugitivos como os anos. Acrescento o seguinte: também as pessoas infelizmente são fugitivas como os anos.
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