Grandes obras de arte são aquelas que conseguem dialogar com o seu tempo. Ainda mais relevantes, são aquelas que conseguem ultrapassar a barreira da própria época, e abordar temas condizentes não apenas com o período de realização ou aquele que desejam representar, mas com o conceito e as implicações da sociedade como um todo. Após assistir o filme Shock Corridor (traduzido estranhamente para o português como “Paixões que Alucinam”), dirigido pelo já falecido diretor americano Samuel Fuller, imediatamente tive que classificá-lo como atemporal.
Neste filme de 1963, Johnny Barrett (interpretado por Peter Breck), um jornalista determinado a ganhar o Pullitzer, ingressa em um manicômio para desvendar a trama de um assassinato ocorrido no local. Para tal situação, ele arma uma farsa com sua namorada e chefe para ser considerado insano e enviado à instituição. Este enredo diz muito sobre a história americana da época e atual. É interessante notar que Fuller coloca alguns valores da nação como doenças que podem levar à insanidade mental: guerra e imperialismo (um dos internos acredita ser um general da Guerra de Secessão), racismo (utilizando o paradoxo, inclui a figura de um negro racista que acreditava ser um membro da Ku Klux Klan ) e religião (o diretor da Instituição chama-se nada mais nada menos que Dr. Cristo).
O manicômio configurou-se como uma metáfora da sociedade, incluindo sua organização social e os males decorrentes. É engraçado observar que no momento de lazer os internos ficam em um corredor que faz alusão à uma rua comum: é como se observássemos aquelas figuras andando por locais públicos em uma rotina de dia-a-dia. Esta imagem leva-nos a questionar: será que a sociedade é um manicômio ou seus males estão tão enraizados que a instituição mental acaba incorporando aquilo que deseja combater?
Hoje ainda há presente nos Estados Unidos o ideal imperialista (um pouco afetado pela perda do posto de potência mundial absoluta) e também o racismo. No entanto, a hostilidade não é focada nos negros como na época da Guerra Civil Americana , mas abrange também latino-americanos, muçulmanos (em decorrência do 11 de setembro), entre outros. Do ponto de vista americano, consigo enxergar uma certa amargura pela “perda de espaço”. O território não é mais norte-americano, tornou-se uma propriedade do mundo. Isso é muito visível na cultura do país – a presença dos imigrantes latino-americanos é tão forte que em alguns estados como a Flórida o espanhol tornou-se praticamente a língua oficial.
Isso também é presenciado na cidade de São Paulo, a potência econômica do nosso país. Há migração de cidadãos de todos os estados do Brasil, especialmente do Nordeste, em busca do “grande sonho paulistano”. Esta questão foi muito bem abordada pelo cineasta (infelizmente também já falecido) Carlos Reichenbach em seu filme Garotas do ABC. O filme conta a história de operárias do ABC, dentre elas Aurélia Schwarzenega, que é apaixonada por Arnold Schwarzenegger e namora um neonazista integrante de uma gangue que repudia nordestinos e negros, liderada por Salesiano de Carvalho.
Assim como os personagens do filme de Fuller, Salesiano (interpretado por Selton Mello) tem uma paixão que o alucina. E pensando por este lado esta tradução para “Paixões que alucinam” é coerente. Os personagens possuem uma paixão por alguma ideia que os deixa alucinados, insanos a tal ponto que devem ficar isolados da sociedade e internados em um manicômio. Afinal, toda ideologia é um caso de amor, visto que assim como a paixão, entorpece os sentidos. Ao final, o jornalista acaba ficando louco devido à sua estadia na instituição. Já disse Eurípedes: “A quem Deus quer destruir, primeiro o enlouquece.”
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