O drama de 1 bilhão de amigos

Compartilhe

“Deletei 31 amigos da noite para o dia”, lamentava um rapaz. “Acordei revoltado, abri o Facebook e passei a tesoura; eram 526 e agora são 495”. E torturava-se, relatando data e horário do sinistro ocorrido a um amigo que dividia a mesa de bar. Não dormira na véspera. Recorria à Canção da América – “amigo é coisa para se guardar embaixo de sete chaves” – e ponderava a questão; relembrava desenlaces de infância e o quão minúsculas haviam sido as razões; festejava sobreviventes amigos de antiquíssimos carnavais; revivia a aflição pelo genocídio virtual cometido. Eu, de carona, bebericava o penoso julgamento que acontecia na mesa arredondada – e mais vizinha impossível – servida de porções de culpas, doses de angústias, tábuas de remorsos e tragos de melancolia: desfazer amizades na rede social azul e branca. “Pode ter sido triste, cruel até, mas foi necessário e inevitável”, sentenciava o rapaz, chamando um disputado garçom.

Batido o martelo, a lista dos condenados incluía, fiquei sabendo, amigos resgatados do passado (supondo zeradas as empolgações iniciais de reencontros, por que eram mantidos ali?); amigos do ciberespaço nunca vistos mais gordos (a não ser em belos filmes como 84 Charing Cross Road, o que pode significar amizade entre pessoas nunca vistas nem mais magras?); amigos dos amigos dos amigos (o irresistível “você tem Facebook” de encontros casuais tem resultado em amizades terceirizadas?).

Não importando se os vínculos são precários ou mesmo nulos, atualmente parece bastar um botão chamado “curtir” e pronto: acolhemos e somos recompensados, lembramos e somos reconhecidos, recompensamos e somos lembrados, reconhecemos e somos acolhidos. Com um simples sinal virtual fica combinado: estamos torcendo pelos nossos “amigos”; nos alegrando com os sucessos deles e nos entristecendo pelos seus fracassos (existem fracassos no Facebook?); testemunhando os primeiros “papai” e “mamãe” de seus filhos pequenos (e, convenhamos, dos adolescentes também); e renovando com eles nossos generosos compromissos.

O rapaz queixava-se também por ter sido mal interpretado depois de postar algo com seus botões. Disse ter arriscado uma explicação posterior mas, tendo em vista o contexto de olhares, gestos e semblantes ausentes, uma justificativa poderia piorar a situação. No Facebook, assim como em qualquer circunstância na qual não estamos cara a cara, tudo costuma assumir uma proporção maior do que realmente tem. Nunca sabemos como a pessoa do outro lado está. Ela pode simplesmente ter acordado revoltada, não?

Nesse labirinto fartamente sinalizado por cartazes de “diga não à inflação do tomate”, por indignações de todo gênero sem prévia checagem das informações, por frases atribuídas a pensadores que nunca as escreveram e por um festival de piadas de toda sorte, personagens espetacularizados sustentam relações mediadas por imagens, nas quais um churrasco de final de semana se transforma em um mega evento, uma viagem se torna uma eletrizante volta ao mundo a bordo de um balão e uma estrela brilhante sobre um telhado passa a ser um novo astro descoberto na Via-Láctea.

Pensei em puxar conversa com o moço: “Jura? De quinhentos ‘amigos’, você cortou apenas trinta?”. Mas fiquei de boca fechada. Primeiro porque não tenho Facebook. Buuu! Isso aí. Segundo, porque o bafafá da mesa ao lado me deixara fora do corpo àquela altura. Três horas da madrugada, desolado, eu pescava ao redor e via fantasmas. Três e meia, pensativo, eu olhava para baixo e enxergava um abismo.

Ostentação por não ter Facebook? Longe disso. Ter ou não ter: legítima a opção. Possuo um moderno telefone celular e, ainda que o aparelho esteja servindo até como espelho para ajeitar o visual – cada vez menos para telefonar –, prossigo assim, sem ouvir os toques característicos da rede de Zuckerberg nele e torcendo pela manutenção de amizades interessadas em saber se eu estou vivo. Triste? Cruel? Pode ser. Mas para mim, pelo menos por agora, tem sido o suficiente.

Amigo que nunca se conheceu, antigamente era chamado de amigo imaginário

Artur Dias

Artur Dias é economista formado pela PUC-SP. Leitor assíduo do El Hombre, descobriu a senha do administrador e passou a postar seus textos desde então.

Privacidade e cookies: Este site utiliza cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com seu uso.

Saiba Mais