BB King precisava de duas notas, e não mais do que isso, para ser identificado — até porque não sabia fazer acordes.
Era um gigante, um monstro da simplicidade e da economia no meio de uma miríade de guitarristas que, especialmente nos últimos 20 anos, passaram a achar importante fazer solos com 750 variações.
Alguém já disse que o gênio faz o difícil parecer fácil. Peça para qualquer guitarrista reproduzir alguma coisa de BB King e notará a diferença aberrante entre um gênio e o resto do mundo.
Riley King, seu nome de batismo, morreu durante o sono, segundo o site oficial. Sofria de diabetes há décadas e era um gordo épico, vocacional. O último dos grandes bluesmen, sobrevivente solitário de uma geração que incluiu Muddy Waters, John Lee Hooker e Howlin’ Wolf.
Encantou plateias até as forças lhe faltarem completamente. Nos últimos shows, se apresentava sentado. Esteve no Brasil algumas vezes. Em qualquer lugar do mundo onde houvesse uma tomada para ligar o amplificador e seu instrumento, lá estava. “Se eu parar, eu não sou pago”, dizia.
Essa humildade não era jogo de cena. Saudado por todo grande roqueiro como mestre — de Eric Clapton, seu fã declarado que deixou-lhe um tributo tocante no YouTube, a Keith Richards, passando por The Edge e Jack White — BB não agia como um rei.
“Eu não sei como explicar, mas vou tentar. Um monte de gente acredita no que dizem outras pessoas. Mas eu sei das minhas limitações”, falou numa entrevista ao Independent em 2012. “É por isso que ainda estou aprendendo. Na minha idade, eu sigo um lema: se não aprender uma coisa nova por dia, é um dia perdido. Penso assim hoje porque tenho poucos dias sobrando”.
Nenhum outro casou tão bem a voz e a guitarra, um complementando o outro. Num excelente documentário na Netflix, ele conta que jamais conseguiu reproduzir a música que escutava na cabeça. Seu vibrato inconfundível foi uma tentativa de emular o que o primo Bukka White fazia com o slide.
Sua arte carregava a infância no Mississipi, onde colheu algodão (chegou a ser um “ótimo motorista de trator”) e viu negros pendurados em árvores pela Ku Klux Klan. O pai abandonou a família quando ele era criança, a mãe morreu pouco depois de câncer e ele foi criado por uma avó. Seu primeiro contato com o blues foi através do gramofone da tia-avó. Aprendeu a cantar na igreja, aos domingos.
Fez shows em qualquer buraco ao longo dos anos 50, ganhando uma mixaria. Num deles, uma biboca que estocava combustível (!), dois homens causaram um incêndio brigando por uma mulher chamada Lucille. Desde então, BB passou a chamar suas Gibsons de Lucille.
Nos anos 60, com a ascensão dos movimento de direitos civis nos EUA, o público jovem negro passou a enxergar o blues como uma lembrança indesejável do passado, música de escravos. Na Inglaterra, porém, os bluesmen eram idolatrados e copiados por bandas que começavam a surgir — Stones, Who, Animals, Kinks, Yardbirds (o grupo que teve Clapton, Jeff Beck e Jimmy Page).
Um novo mercado se abria. Em 1968, ele se apresentou pela primeira vez para brancos no Fillmore West, em San Francisco. “Eu vi todos aqueles garotos cabeludos e pensei: ‘Meu empresário fez besteira’. Não tinha ideia de que aqueles meninos estavam me ouvindo”, disse. Chorou no palco.
Um ano depois lançaria seu maior sucesso na carreira, “The Thrill Is Gone”, após um divórcio. Foi seu único hit, mas o blues já não era mais um estilo marginal e ele passou a ser atração de festivais, talk shows e cassinos em Las Vegas.
Nos anos 80, participou do melhor álbum do U2, salvando “When Love Comes to Town” com um solo. Um excelente casamento, já que, se BB não sabia fazer acordes, The Edge é absolutamente incapaz de solar.
“Eu queria conectar minha guitarra às emoções humanas”, disse em sua biografia. Conseguiu. O gênio faz o impossível soar fácil.