Uma das passagem mais interessantes do filme Jobs, que está em cartaz no cinema brasileiro, diz respeito a sua saída forçada da empresa que ele próprio criou. Por isso John Sculley passou para a história dos negócios pelas razões erradas: foi ele que em 1985 demitiu Steve Jobs da Apple. Em seus primeiros anos, a Apple era uma grande ideia com uma administração caótica. Jobs era um gênio romântico e quase hippie. Cabelo nos ombros, cavanhaque, jeans e camiseta, ele era capaz de coisas como passar meses na Índia para buscar num guru o sentido da vida. Quando ele e seu sócio Steve Wozniak foram buscar capitalistas que financiassem o crescimento da Apple, logo ficou claro que uma gestão profissional era necessária.
Foi aí que surgiu Sculley. Era analfabeto funcional em tecnologia, mas fizera uma boa carreira em marketing na Pepsi. Segundo relatos, quem o convenceu a ir para a Apple foi o próprio Jobs com um argumento irresistível: “Você vai passar o resto da vida fazendo água açucarada ou quer ter uma chance de mudar o mundo?”
Sculley ficou com a segunda alternativa, naturalmente. Mas logo surgiram conflitos. Isso é inevitável quando um fundador divide o controle e é cobrado por resultados por capitalistas interessados não em mudar o mundo mas sim em obter dividendos. Sculley, com o apoio dos investidores, mandou Jobs embora. Ficou mais alguns anos na Apple, parte deles com bons resultados. Mas nos últimos dois anos de sua gestão a Apple quase quebrou, e ele foi mandado embora. Sua saída foi fundamental para que Jobs voltasse à Apple, em 1997, depois de um ostracismo de doze anos. O resto é conhecido: iPod, iPhone, iPad. Em 2012 a Apple atingiu o valor de US$ 623 bilhões, maior do que qualquer outra empresa da história.
Foi dentro dessa série notável de sucessos da Apple que Sculley reapareceu na mídia. Em 2010, quando a empresa ultrapassou a Microsoft como a maior do setor de tecnologia, ele concedeu uma entrevista ao The Daily Beast, um site jornalístico americano. O assunto não poderia ser outro: a demissão de Steven Jobs. Sculley enumerou lamentos. Lamentou o fato de Jobs, que morreu em outubro de 2011, jamais ter voltado a falar com ele desde o episódio. Lamentou que o gelo que nunca se dissolveu. Lamentou não ter encontrado uma maneira de mantê-lo na empresa. “Tinha uma tremenda admiração por ele”, disse Sculley. Não era recíproca, provavelmente.
Vista hoje, a demissão de Jobs foi o equivalente à decisão da gravadora Decca de recusar um conjunto chamado Beatles em 1962 porque guitarras iam sair de moda. Mas na época os coisas não eram tão claras. Sculley tinha fama de visionário, e gostava de alimentá-la. Publicou em 1987 a autobiografia Odisséia, e deu um exemplar a cada funcionário da Apple para “inspirar” a equipe. (Funcionários costumam receber presentes dessa natureza com um misto de repulsa e escárnio, e isso é ainda mais acentuado quado se trata de uma empresa com um senso messiânico como a Apple.) O título que o New York Times deu ao artigo em que falou da saída de Sculley é revelador da aura do executivo e, também, dos limites do jornalismo: “O visionário presidente da Apple deixa a empresa.”
Não é fácil o papel de carrasco de Jobs. Você parece obtuso. Se você não foi capaz de avaliar o gênio que criou a Apple, o que você está fazendo no mundo dos negócios? A postura mais comum, nessas situações, é negar o gênio. Não foi o que Sculley fez, e eis uma atenuante para o crime corporativo que cometeu. Mas é o que faz um capitalista que colocou dinheiro na empresa em seus primeiros tempos e tinha um cargo na direção: Arthur Rock. Num depoimento para um projeto de história oral da Universidade da Califórnia-Berkeley, ele deu sua versão da demissão. “Steve Jobs era um problema”, disse. “Era cabeça dura, um enfant terrible. Ele incomodava as pessoas na empresa. Queria fazer as coisas do jeito dele. Não dizia para ninguém o que estava fazendo. Aí, finalmente, tivemos que tirá-lo.”
Rock parece empenhado em convencer a si próprio de que foi a decisão certa. “Steve é um patrimônio nacional”, disse ele. “Não duvido disso, mas ele não inventa as coisas. Tudo que ele faz é pegar idéias dos outros e promovê-las. Ele tem concepções de design, e sabe para onde as coisas devem ir. Mas ele não faz os projetos.”
Curiosamente, essa tentativa de diminuir Jobs tem o efeito contrário. Que virtude é maior num líder do que se cercar de pessoas capazes de ter as idéias que vemos traduzidas em produtos como o iPod, o iPhone e o iPad? Jobs, gritam os fatos, convivia bem com pessoas talvez ainda mais criativas que ele. De Sculley e de Rock, definitivamente, não se pode dizer o mesmo. E é isso que separa meninos de adultos no mundo dos negócios.
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