Almoço com um correspondente brasileiro no Bella Italia, uma cantina em Leicester Square. Peço o de sempre: brusqueta primeiro, espaguete à bolonhesa depois e Diet Coke para beber. Falamos, inevitavelmente, de jornalismo. A única maneira de dois jornalistas não falarem de jornalismo ao se encontrar é no caso extremo de morte súbita de um deles.
Digo a ele que se tivesse 20 anos buscaria fazer a carreira na mídia digital. Ele acha que no Brasil o jornalismo digital ainda vai demorar a se firmar. Não concordo. Penso que a classe média emergente do Brasil vai sair direto do nada em termos de leitura para o Google. Falo sobre meu projeto de site para quando voltar ao Brasi e compartilho minha dúvida existencial. O momento do projeto é ideal: entrar em algo que está na decolagem, com grandes perspectivas de futuro. Mas e o meu momento? Faz sentido, para mim, o mergulho em algo que roda num regime de 24 x 7 x 365? Tenho sabedoria interior suficiente para num domingo à noite deitar na cama e ler um livro ou vou ficar trabalhando ininterruptamente?
Jornalistas morrem cedo, em geral de tanto trabalhar. Meu pai com minha idade estava morto. Tenho três filhos que ainda precisam, em certa medida, de mim. E uma namorada, Erika, que me proporciona instantes incríveis.
E então?
Sinto que meu companheiro de mesa gostou de ouvir minhas reflexões. Ele tem duas filhas, e me conta que trabalhou tanto durante os tumultos de julho em Londres – das 8 da manhã às 2 da madrugada, em geral – que um dia pensou que estava morrendo. O lado esquerdo do corpo adormeceu e ele entrou em pânico. Não era, felizmente, nada. Apenas excesso de trabalho.
Estou lendo uma biografia de Dickens. Ele morreu antes dos 60 exatamente por trabalhar demais. Dickens foi o primeiro romancista a publicar seus romances em jornais. Isso o obrigava a cumprir prazos cruéis. Ele simplesmente tinha que escrever. Não podia esperar pela inspiração, ou coisa do gênero. Uma vez, ele escreveu dois romances simultaneamente, ambos publicados em jornais. Se não bastasse o cansaço físico, Dickens se apegava de tal forma aos personagens que a morte de qualquer um deles lhe trazia um genuíno sofrimento.
A temporada européia me fez ver o quanto os franceses estão certos na forma de enxergar o trabalho. O francês não se casa com a empresa em que trabalha. Ele tem uma relação calculada de troca: dá parte de seu tempo e recebe um dinheiro que lhe permite tomar vinho, comer bons queijos e sentar demoradas horas num bar em que falar de trabalho é proibido. Tente achar alguém com um laptop num bar em Paris. Jamais. O francês não é sequer amigo pessoal de gente do trabalho, para que a distinção entre vida pessoal e vida profissional fique clara.
Mas e eu?
Conseguirei ser francês? Se não inteiro, pelo menos metade?
Bem, são três da tarde e tomamos um último expresso. Meu colega tem um compromisso.
Nos despedimos e fico um pouco respirando o ar da Leicester. É um dos meus pontos favoritos de Londres, uma agitação contínua, gente vindo e gente indo o tempo todo, e isso contrasta com a paz completa do bairro em que moro, Fulham. No prédio em que moro, o único apartamento que faz barulho é o meu.
Fico na dúvida entre ver a exposição de Da Vinci na National Gallery ou os 99% na St Paul. Dizem que a exposição de Da Vinci é fabulosa, ainda que com a ausência conspícua de Mona Lisa. E estou curioso para sentir os ânimos dos acampados na frente da catedral de St Paul depois que a polícia de Nova York desfez a concentração de manifestantes nas imediações de Wall Street.
Mas.
Mas opto por uma terceira via. Ali mesmo na Leicester, a cem metros, está o Empire, um cassino ao qual fui muitas vezes para jogar pôquer quando Pedro, meu filho do meio, estava aqui.
Uma tarde fria, na casa dos dez graus, pede uma sala aconchegante de pôquer, mais do que o vento gelado da St Paul. Pronto. Decisão feita.
Entro numa torneio de 40 libras, me divirto algumas horas, e vou para a mesa final. Fico em segundo e ganho 200 libras. Mando do cassino mesmo uma foto de mim na mesa final para Pedro. Antes de ir embora, vejo um jogador ser massageado na própria cadeira por uma Ibiza Girl, o nome das massagistas que o Empire coloca à disposição dos jogadores. No romance que estou escrevendo, Novo Tempo, o correspondente em Londres de um jornal brasileiro namora com uma Ibiza Girl.
Volto para casa quando já está escuro, isso às cinco da tarde.
Tive uma tarde de francês, reflito – e me sinto ligeiramente orgulhoso por isso.