“Ouça Love Me Do; imagine que são quatro garotos que querem produzir um disco com você e lhe trouxeram uma música para ser avaliada hoje, em 2012”. Foi isso que me pediram. E é sobre isso que eu vou escrever, na condição de produtor que sou.
(Essa é a hora da pausa.)
É claro que é fácil avaliar os Beatles 50 anos depois de seu primeiro lançamento. Você não corre o risco de, como o presidente da Decca Records em 1962, dizer que eles não eram uma boa banda. Nós sabemos que, bons ou ruins naquele momento, eles se tornariam maravilhosos posteriormente.
Mas há armadilhas no caminho deste exercício de imaginação, que não estão simplesmente em abstrair que hoje nós sabemos o impacto da banda na cultura pop mundial. Está em imaginar como seria o mercado musical sem a passagem deles pelo mundo; e se eles, gênios que foram, me trariam esta música hoje. Ou se avaliariam o momento de forma diferente e, quem sabe, me trouxessem um Gangster Rap.
Mas vamos considerar o seguinte cenário: o mercado é exatamente como nós conhecemos – apenas os Beatles jamais existiram. A Adele está fazendo o novo 007, o Michael Jackson morreu há alguns anos, a Madonna vai sair em turnê, os Rolling Stones completaram 50 anos de banda, o Psy bombou com Gangnam Style.
Aqui no Brasil, Michel Teló tocando em Picadilly Circus. Os garotos me fazem uma visita e trazem um single gravado na Inglaterra. Chama-se Love Me Do. Não é um Gangster Rap. É Love Me Do, exatamente como nós conhecemos.
(Esta é a hora em que eu penso um instante).
Eu ouço a música numa sala acusticamente tratada, em um par de monitores (caixas de som) de referência Yamaha. Elas não são feitas para agradar meus ouvidos, mas para me mostrar todas as frequências por igual e me denunciar o que é há errado nas gravações e mixagens. Nelas, consigo notar que a corda mais grave do Baixo, o “Mizão”, está desafinada, quase ¼ de tom abaixo do que deveria estar. Não gosto também da forma como o pandeiro e a caixa da bateria estão levemente fora de sincronia em certos momentos. Em tempos de Pro Tools, essas coisas não são toleráveis, exceto se forem intencionais. Eu considero que ficaria melhor se fossem editadas e colocas mais juntinhas.
A música não é genial. Mas também não é ordinária. A letra é boba, mas a música é acima da média. A ideia de um arranjo minimalista, sem muita dinâmica, com o tema de harmônica, me parece charmosa. O cantor tem uma voz doce e boa; o backing vocal é muito bom. “Tem espaço para este trabalho no mercado” é a segunda coisa que penso. Nem de longe imagino que vai ser, em 2012, o mesmo espaço que teve em 1962. Mas tem algum lugar para colocar estes caras. A contra-corrente é sempre interessante, porque as tendências são circulares. Como hoje quase tudo que se faz no mainstream é Hip Hop e Novo Rhythm & Blues, um bom artista de Folk Rock (que é o que me parece Love Me Do) pode encontrar muito espaço.
Após esta reflexão, ficou claro para mim que eles são talentosos. Não gênios, como se tornariam posteriormente. Mas com uma grande possibilidade de fazer um trabalho interessante. Isto já não é dúvida. Nem se há espaço é uma dúvida. Penso que vão ter que melhorar as letras, mas vamos começar pelo começo.
Neste momento, eu chamaria os garotos para sentar no jardim. Sair de dentro do estúdio para clarear as idéias. “O que vocês pretendem com isto?”, pergunto. John responde: “Queremos ser como o Elvis Presley”. Eu respondo prontamente que não dá. Não com isto, não agora, não sem 2 milhões de dólares. “Vocês podem começar a desenvolver a carreira com esta música, mas só. Não tem nenhuma chance de fazer uma invasão na América com isto. A gente tem que fazer uns vídeos bons e tentar movimentar as redes sociais. Ao mesmo tempo, a nossa RP vai ligar para 200 jornalistas para quem sabe 2 se interessarem em falar da música. Vamos mandar para as estações de rádio também, mas eles não vão tocar. Talvez a Mix e a Alpha, mas todas as outras vão pedir R$ 20 mil cada uma, que não vale a pena”.
Esta, provavelmente, seria a hora em que o John Lennon me mandaria para o inferno. “Não vou ficar mendigando atenção no fucking Twitter”. E se ele o fizesse, eu diria “lamento, mas não dá para fazer diferente”.
Mas vamos imaginar que eles topassem minhas idéias iniciais.
“Vamos lançar isto, mas vamos ter que arrumar algumas coisas”. Repenso, e acho que não vale a pena regravar a música toda. A interpretação é boa e a voz está muito bem gravada. “Fala para os caras do estúdio onde vocês gravaram me mandarem a seção (a música com os canais abertos) para a gente regravar o baixo. Você aí, ô do cabelo… Paul, é isso? Aproveita e pega o metrô aqui na esquina, desce no Clínicas, vai na Rua Teodoro Sampaio e compra um maldito afinador”.
Aí então eu pensaria em uma estratégia para os garotos. Onde, exatamente, está este espaço? Como vamos alcançá-lo? Vamos começar pelo YouTube, claro. Mas já é hora de gastar energia com as rádios? Exposição sincronizada melhora muito os resultados, mas gera muito mais gastos. Nós temos dinheiro na produtora para lançar isto? Se temos, este é o trabalho para colocar dinheiro, ou vamos investir na nossa dupla sertaneja e deixar a exposição maciça destes meninos para o semestre que vem? A gente pode deixar o trabalho maturando sozinho nas redes sociais. Será que vamos perder o timing? Será que vamos desanimar os artistas?
Toda esta complexidade é assunto para se resolver em dias, semanas, às vezes meses. Eu aprendi com um dos meus grandes mestres que disco se resolve nos 45 do segundo tempo. Até ali, eu provavelmente teria convencido John a mudar o trecho “someone to love, somebody new, someone to love, someone like you”.
Se eu teria êxito com os Beatles? Não sei. Mas na minha audição, eles passaram.
Privacidade e cookies: Este site utiliza cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com seu uso.
Saiba Mais