Estou em Copenhague, diante da estátua do “Sócrates dinamarquês”, como as pessoas lá o chamam, com justificado orgulho. É um homem de bengala e cartola, que como Sócrates tinha o hábito de filosofar pelas ruas.
Seu nome é Soren Kierkegaard (1813-1855), um filófoso que ajudou a moldar a singular alma dinamarquesa. Sobre sua influência não apenas local mas no mundo culto, basta dizer que Sartre baseou sua celebrada doutrina existencialista em Kierkegaard.
Kierkegaard inventou o existencialismo sem jamais ter usado essa palavra. Um existencialista é, basicamente, como o nome sugere, um sujeito que coloca foco em sua existência pessoal. O existencialista preza, acima de todas as coisas, o livre arbítrio, a autonomia absoluta do indivíduo.
Faça o que você acha que deve fazer. Dane-se o resto. A vida é mesmo um absurdo. Logo, você tem direito de cometer os seus próprios absurdos. Não ligue para que os outros vão pensar de você. Simplesmente aja. Vai comprar cigarro na esquina e sente vontade de sumir e começar uma vida nova? Faça.
Em linguagem vulgar, é mais ou menos este o mandamento supremo do existencialismo.
Com Kierkegaard você aprende a ousar, a não ter medo de ir contra a corrente. A verdade, segundo ele, está sempre com a minoria. Se você arrisca, pode momentaneamente “perder o equilíbrio”. Se não arrisca, vai “perder a si mesmo”. Com Kierkegaard você aprende o valor de tomar riscos na vida.
Kierkegaard viveu pouco e escreveu muito. Ao morrer, aos 42 anos, tinha escrito cerca de 40 livros. Todos eles em dinamarquês, o que na época era uma inovação, um atrevimento, uma ousadia. Os conterrâneos de Kierkegaard escreviam em alemão e latim, as línguas dominantes na região. O idioma dinamarquês renasceu com Kierkegaard.
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O absurdo que ele enxergava na vida estava presente em sua obra. Kierkegaard escreveu sob múltiplos pseudônimos, e não raro ele próprio desmontava com um deles o que montara com outro. Victor Eremita, Johannes de Silentio e Climacus eram alguns deles. Dono de um fino senso de humor, disse que como o mundo já estava cheio de gente que tinha facilitado a vida das pessoas com invenções como o telégrafo e a locomotiva seu papel era criar dificuldades. Sabia que era um gênio. “Os gênios são como as tempestades: vão contra o vento; aterrorizam a humanidade; purificam o ar”, escreveu ele.
Kierkegaard era, ele mesmo, uma tempestade.
Cultivou a solidão. Foi profundamente marcado pelo pai, um homem atormentado que se martirizou por ter vivido maritalmente (em pecado) com a mulher antes que se casassem oficialmente. Kierkegaard não soube lidar com o amor em sua vida cotidiana. Foi apaixonado por uma mulher e correspondido, mas rompeu o noivado sem razão aparente. Ela se casou com outro homem, e isso foi um tormento a mais para ele. Os direitos autorais de sua obra foram legados para a amada, que acabaria, anos depois, enterrada a seu lado. Essa história de amor, renúncia e devoção é o centro do Diário de um Sedutor, um clássico de Kierkegaard. É a parte final e independente de Ou Isto ou Aquilo, o livro que o consagrou antes dos 30 anos. Mais interessante que a sedução em si, diz o autor, é a engenharia, a construção dela.
Como as bicicletas e a estátua da Pequena Sereia do conto de fadas de Hans Christian Andersen, Kierkegaard está presente intensamente em Copenhague. Compro, na livraria que fica no prédio da Biblioteca Real, uma pequena biografia sua. Leio-a numa espreguiçadeira ao lado da biblioteca. Vejo e gosto de detalhes como o de que ele jamais se deixou fotografar, ao contrário de Hans Christian Andersen, seu grande compatriota e contemporâneo. Gosto também de saber que no Brasil há estudiosos empenhados em traduzi-lo e difundi-lo, como Álvaro Valls.
Gênios são como tempestade. É uma grande definição. Vejo o homem de cartola e bengala numa rua de Copenhague, e sinto aquela coisa estranha que provoca em nós a visão de uma tempestade humana, um certo sentimento de que nem tudo está perdido.