Há dois anos eu estive em Londres. A previsão era ficar lá por um mês – mas acabei ficando seis. A princípio usufruía com espantoso prazer do sistema público de transporte da cidade, que tem o metrô (ou tube, como é apelidado pelos ingleses) mais antigo do mundo: 150 anos completos recentemente. Para quem mora em São Paulo, encontrar facilidade em se locomover para qualquer canto de um lugar com metrô ou ônibus é algo que encanta. Sim, lá também tem os famosos horários de picos e, acreditem, o tube fica bem cheio nesses momentos. O preço, igualmente, não é ideal. Na época, pagava-se 27 pounds para andar quantas vezes quiser no metrô e no ônibus durante uma semana – isso dava cerca de 90 reais. Nada barato, não?
Depois de curtir por um mês a integração maravilhosa que o metrô proporciona entre pessoas e cidade e os segundos andares dos famosos ônibus vermelhos double decker, eu descobri que o meu anfitrião tinha uma bicicleta. Fui verificar a situação da magrela e ela estava ótima, só precisava encher o pneu. Foi o que fiz depois de certa procrastinação e pronto – estava apto a pedalar pela capital inglesa.
A bike era um pouco diferente da que eu tinha em São Paulo. O quadro tinha a parte superior rebaixada (parecido com o das bicicletas do Itaú) e o pneu era bem mais fino. Problemas? Absolutamente nenhum. A magrela era extremamente confortável. Montei nela e fui dar uma volta.
Como era de se prever, tive algumas dificuldades. A primeira foi o sentido das mãos. Em avenidas esse detalhe é apenas uma curtição, mas em ruas de bairro pode ser motivo de acidente se você não estiver atento, uma vez que há diversos cruzamentos. Outro obstáculo que enfrentei foi o frio (era pleno inverno europeu). Andar sem luva é absolutamente fora de cogitação. Como bom brasileiro ainda me equipava com ceroula por baixo da calça, casaco por baixo do sobretudo e um meião por cima da meia comum. O cachecol é peça igualmente indispensável. Já o rosto congela, não tem jeito. Na verdade, as “algumas dificuldades” que me apareceram foram somente essas duas. De resto foi maravilha.
A estrutura para abrigar bicicletas que Londres oferece, ao contrário do sistema público de transporte, não é maravilhosa. São poucas ciclofaixas e ciclovias. Faróis para bicicletas também são raros. Os ciclistas costumam andar no canto de ruas e avenidas, junto de carros e outros automóveis. Se comparado à São Paulo, pelo que pude observar in loco naquela época, a diferença na estrutura cicloviária não é muito grande. O diferencial é a quantidade de automóveis nas ruas, que, aí sim, é incomparável. Isso faz com que a cidade se São Paulo se torne ameaçadora para os ciclistas e a cidade de Londres não.
No entanto, há outra diferença ainda mais crucial: as pessoas.
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(MAIS: Conheça as Boris Bikes paulistanas)
Lembro-me de uma frase de um amigo que dizia assim: “Em Londres a bicicleta é vista como parte do trânsito, em São Paulo é vista como um problema para o trânsito”. Experimentando os dois lados eu devo dizer que concordo com isso (ainda que reconheça que esse cenário esteja mudando na capital paulista). Em Londres aceita-se bicicletas.
Boa parte das ruas londrinas (principalmente as de bairro) são bem estreitas, o que faz com que as ultrapassagens sejam quase impraticáveis. Para fazer isso é preciso usar a faixa da contramão. Pois bem, quando, nessas condições, um motorista tem à sua frente um ciclista, ele aguarda pacientemente o momento oportuno de ultrapassar a bicicleta sem oferecer risco a quem está pedalando. Os caras já estão esperando esse tipo de situação. E olha que muitas pessoas que andam de bicicletas já passaram do meio século de vida e pedalam em ritmo moderado, como se estivessem passeando. Se isso é um motivo de irritação para quem está no carro? Não que eu tenha observado. Agora, vai tentar andar em ritmo moderado na Avenida Santo Amaro para você ver o que acontece.
Na cidade da rainha, mesmo que a estrutura cicloviária não seja exemplar, respeita-se o ciclista – e isso é suficiente para dar segurança a quem está em cima da magrela.
Mas por lá os ciclistas também cumprem com seus deveres: param nos semáforos, dão sinalização, não andam displicentemente e nem sobem nas calçadas. Apesar de não ser obrigatório, o colete florescente é visto com facilidade e o capacete (equipamento que já foi colocado em cheque) é quase unanimidade.
Certo dia eu passei por uma situação um tanto constrangedora. Estava pedalando pela calçada da Regent’s Street e alguma coisa me dizia que eu não deveria estar fazendo aquilo. Como eu ignorei e continuei minha pedalada, foi preciso que alguém – uma policial – me dissesse, em alto e bom som (mas gentilmente), que eu não deveria estar fazendo aquilo – “Hey, sir, you can’t do that”. Ok, minha senhora, foi mal. Essa situação figura bem a diferença entre a cultura de bicicleta brasileira e inglesa.
Mesmo que Londres não seja uma referência para os europeus quando o assunto é a magrela, para nós pode ser um ótimo exemplo. Se cidades como Amsterdã e Copenhague funcionam em uma realidade muito distantes da nossa, vamos nos inspirar em cidades que nos trazem um exemplo mais palpável – e o exemplo de Londres é bem palpável. Mesmo que a estrutura deixe a desejar, a consciência faz com que o negócio funcione de forma aceitável. Isso significa que devemos parar de exigir pelos nossos direitos? De forma alguma – mas que devemos começar a olhar para os nossos deveres.
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