Foi assim.
Pelé sofria uma marcação dura de um dos melhores zagueiros que o Corinthians já teve, Clóvis. Alto, elegante, porte de czar, cabelos claros ondulados, Clóvis seguia Pelé onde quer que ele fosse. Era um jogo no Morumbi, em meados dos anos 60, e eu estava ali na arquibancada com meu pai, um garotinho loiro e sofredor. Papai gostava de me levar ao estádio para ver o Corinthians, uma de suas paixões que, como o jornalismo, se transmitiram para mim. Era um domingo de sol, e ver o Santos de Pelé era ao mesmo tempo fascinante e tenebroso para os corintianos. Aquela torcida enorme, ruidosa e atormentada por anos seguidos sem um título, uma legião de derrotados e no entanto orgulhosos por saberem que eram únicos como torcedores, aquela multidão que dominava os estádios com sua fidelidade fanática parecia dar uma motivação a Pelé.
Teorias conspiratórias afirmavam que Pelé jogava mais contra o Corinthians por raiva por ter sido reprovado numa peneira no Parque São Jorge quando viera de Três Corações para tentar a sorte no futebol, mas tenho para mim que a torcida do Corinthians é que o inspirava, Pelé castigava e ao mesmo tempo homenageava corintianos como papai e eu com atuações majestosas, que nenhum de nós haveria de esquecer pelo resto dos dias, para o bem e para o mal.
Naquele domingo, num Morumbi ainda sem o anel completo, e com Clóvis fixo nele, vi encantado e horrorizado Pelé deixar subitamente o grande zagueiro paralisado. Pelé estava no lado esquerdo, perto da linha do meio de campo, e Clóvis atrás dele. Um jogador do Santos esticou, lá de trás, a bola em linha reta para Pelé. Ele não tinha espaço, não tinha ação, não tinha o que fazer de perigoso com Clóvis, vigilante como um segurança de boate, atrás dele. Mas para surpresa de todos nós, e talvez dele mesmo, Pelé, quando a bola chegou a ele abriu as pernas e saiu correndo atrás dela, que passara invisível pelas pernas de Clóvis. Pelé apanhou a bola já perto da área do Corinthians, pela esquerda, avançou com suas passadas atléticas até a pequena área e, na saída do goleiro, rolou-a, generoso, para Coutinho, que vinha de trás e apenas a empurrou para dentro. Quando Clóvis, um ótimo zagueiro, entendeu finalmente o que estava ocorrendo, a bola já estava na rede.
Aquele lance foi uma das coisas mais lindas que vi em minha vida, e não apenas no futebol. Já o narrei várias vezes a meus filhos e a corintianos mais jovens. Em segundos, Pelé mostrou virtudes múltiplas e incomparáveis: o improviso, a inteligência, a simplicidade, o vigor e por fim, ao empurrar a bola para Coutinho, o espírito de equipe. Se você olhar a súmula daquele jogo remoto, aparecerá ali Coutinho como o autor do gol, mas quem fez tudo mesmo foi Pelé. Nas semanas que antecediam os encontros com o Santos, eu torcia fortemente para que Pelé tivesse algum problema que o impedisse de jogar, uma disenteria ou coisa parecida. Ouvir seu nome nos alto-falantes que anunciavam a escalação dos times era apavorador como um trovão súbito numa madrugada silenciosa. Mas poucas coisas na infância me trouxeram tanto enlevo quanto o som cadenciado da escalação do Corinthians, nome a nome, lentamente, nos estádios a que meu pai me levou nos anos 60.
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Penso naquele jogo contra o Santos e naquele lance entre Pelé e Clóvis, não sei por que, ao refletir sobre minha relação com o Corinthians. Nunca parei para meditar sobre o tamanho do Corinthians em minha vida, e talvez por estar tão longe dele, aqui em Londres, faço esse exercício pela primeira vez, nestes dias em que se comemoram os 99 anos do clube. Dei risada com os vídeos mostrados numa festa do Corinthians nesta semana, nos quais um Gavião inferniza um bambi, um porco e um peixe.
Papai nunca me disse para ser corintiano, mas de alguma forma não havia alternativa para mim. Posso me imaginar médico, professor, bombeiro, mas não consigo me ver são-paulino, palmeirense ou santista. Eu não seria eu mesmo se não fosse corintiano. Eu já era corintiano fazia tempo quando ouvi, pela primeira vez, meu pai filosofar sobre a arte de escolher o Corinthians como time. Metade a sério, metade não, ou pelo menos assim me parece tantos anos depois, meu pai dizia que só fazia sentido torcer pelo Corinthians. O Palmeiras era coisa para imigrantes italianos, dizia ele. Os filhos desses italianos já não tinham necessidade de torcer para um time que remetia à Itália; eram jovens que já tinham assimilado a cultura brasileira e paulista, e parte essencial dessa cultura residia em torcer pelo time da massa, o Corinthians. O São Paulo era o time da elite, e o Santos só tinha razão de ser para quem era da cidade de Santos. O Corinthians, segundo a lógica impecável de meu pai, era a única escolha adequada para os paulistas.
Devo ao Corinthians momentos únicos de intimidade com meu pai, nós dois ali aflitos na arquibancada, abraçados na comemoração dos gols e unidos na dor das derrotas. Meu pai uma vez me carregou nos ombros num tumulto na saída do estádio, me devolveu a segurança perdida, e esta é outra lembrança boa que devo ao Corinthians.
Na infância, presente de Natal nenhum me deixava tão feliz como o uniforme do Corinthians, de preferência o segundo, camisa listradas de branco e preto, as faixas pretas mais grossas que as brancas, antes que marcas cambiantes invadissem as camisas. Fui louco por um uniforme que jamais voltei a ver, e se visse comprava, um em que a camisa branca tinha gola preta. Sou de uma geração em que os meninos só jogavam futebol. Havia bons times em praticamente cada rua da cidade, e campos de futebol em alta quantidade nos terrenos que com o correr dos anos abrigariam prédios, condomínios e shopping centers.
Guardo na memória, com afeto, jogadores do Corinthians, sobretudo os de minha meninice. Ditão, o beque central artilheiro, um zagueiro que subia em baixa velocidade sob aplausos esperançosos para a área adversária em escanteios nos finais de jogo em que a equipe perdia, para temor dos adversários. Ditão, corpulento, um pequeno bigode no rosto largo e escuro, foi responsável, nos anos 60, por algumas das viradas que deram ao Corinthians a aura de uma tribo de guerreiros que jamais se entregam. Fiquei muito triste com a notícia da morte de Lidu e Eduardo num acidente de carro quando voltavam de Presidente Prudente, Lidu um lateral direito cheio de força, Eduardo um ponta esquerda hábil, ambos jovens e promissores. Lembro a fisionomia dos dois, assim como a tarde no Morumbi lotado em que Lidu sofreu barbaramente nas mãos, melhor, nos pés de um outro Eduardo, Edu, atacante do Santos que aos 16 anos já estava na seleção brasileira. A morte de Lidu e Eduardo nos transformou em torcedores enlutados. Também gostava de Flávio, o centroavante de cabeçadas possantes e calculadas, em que a bola quicava no chão pouco antes de se aproximar insidiosamente do goleiro.
Mas nenhum jogador me marcou tão profundamente como Rivellino, o Reizinho do Parque. Eram tempos em que os jogadores ficavam nos clubes tempo suficiente para ganharem apelidos carinhosos. Rivellino, com sua perna esquerda treinada no espaço curto do futebol de salão, era nosso orgulho. Fiquei feliz quando li uma entrevista de Maradona em que ele dizia que, para ele, Rivellino fora melhor que Pelé. Era também minha opinião. Lembro bem que em 1968, quando Rivellino explodiu com a camisa 10 do Corinthians, havia dúvida na crônica esportiva sobre quem ficaria com o número mágico na seleção na Copa de 70 no México, Pelé ou ele. A saída de Rivellino do Corinthians em 1974 foi um golpe para mim, mas gostei de vê-lo iluminar o Maracanã defendendo o Fluminense e disparando lançamentos longos para Cafuringa.
Lembro também com carinho e respeito alguns jogadores adversários que deram beleza e emoção aos jogos que vi com meu pai. Pelé acima de todos, mas também Ademir da Guia, o Divino, o meia do Palmeiras que antecipou em 30 anos a elegância simples de Zidane, e Gérson, o Canhotinha de Ouro que com sua liderança carismática tirou o São Paulo de uma prolongada seca. Toninhi Guerreiro também, queixudo como Federer e Tarantino, um goleador prognata que compensava a falta de técnica com uma fibra corintiana, ele que perturbou incansavelmente zagueiros alvinegros quando jogou primeiro no Santos, ao lado de Pelé, e depois no São Paulo.
Uma das satisfações que tenho é a transmissão a meus filhos Emir, Pedro e Camila do amor pelos Corinthians. Não fui tão sutil como meu pai. Inventei vitórias míticas, distorci placares desfavoráveis, diminuí absurdamente os outros times, tudo em nome de ter com os três no Corinthians um elo parecido com o que tive, nas arquibancadas do passado, com meu pai.