Uma rua escura e deserta na madrugada é um pesadelo até para as mulheres mais corajosas. Pior ainda pra mim, que, honestamente, sou a frouxidão personificada.
Eu andava na maior velocidade possível. Qualquer pedrinha no caminho me atiraria longe, mas, foda-se, eu estava com medo daquela rua às duas da manhã. Não se podia ouvir nem um grilinho quebrando o silêncio, nem o barulho mais distante de um motor de carro ou de uma voz ecoando. Nada. Só o motor da minha moto e, eventualmente, o tilintar dos meus dentes, tremendo de frio e de medo.
Eu achava que nada mais aumentaria o meu desespero, até avistar o vulto de outra moto atrás de mim, bem perto. Gelei. Fiz meus últimos pedidos aos céus. Vi aquele filminho da vida inteira na cabeça, que as pessoas dizem que vêem quando estão à beira da morte. Pela maneira como ele colocou-se em paralelo a mim, ou estava mal-intencionado ou se divertindo com o meu desespero. E nenhuma das duas hipóteses era lá muito idônea.
Resolvi, numa batalha interior contra aquele medo fora do comum, dar uma espiada no retrovisor. Me arrependi amargamente. Ele tinha tatuagens mal-feitas e desbotadas, cujo significado eu sinceramente preferi nunca saber, e usava um colar cujo pingente alcançava seu umbigo.
Àquela altura eu não conseguia articular nada, nem mesmo uma fuga. Fiz tamanha confusão que não conseguia mais trocar de marcha. A moto parou e, sinceramente, nem importava tanto. “Ele iria me parar de qualquer forma”, pensei.
O homem encostou sua moto e veio em minha direção. Eu desejei evaporar. A cada passo dele, sentia o meu coração na garganta, o suor escorrendo na testa apesar do frio da madrugada. Já estava quase entregando minhas chaves e meu celular recém-comprado antes mesmo de ele se pronunciar, quando, no tom mais surpreendentemente doce, disse: ‘Tá tudo certo aí, moça?’
Senti o alívio me percorrer a espinha. Naquele primeiro momento, tive uma vontade absurda de pular nos braços dele num abraço de gratidão, mas eu continuei sem ação nem mesmo para responder à pergunta dele. O rapaz se aproximou e deu partida no motor da minha moto: “Ela só interrompeu, moça. Você tá bem?”
Disse um “estou” abafado e saí com pressa. Segui para casa pensando no quanto os estereótipos nos tornam seres humanos ruins.
Se, naquele momento em que eu espiei o retrovisor tivesse avistado uma senhorinha aparentemente inofensiva ou um moço com cara de nerd, a minha noite teria, certamente, sido menos emocionante, por assim dizer. Acontece que a senhorinha inofensiva ou o moço nerd poderiam não parar para me ajudar. Mas o moço tatuado e de batidão parou.
Pensei em todas as vezes que recusei um convite para jantar de caras com aparência bossal ou patética, mas que poderiam ter me feito feliz para sempre ou, simplesmente, me proporcionado uma noite divertida.
Pensei em todas as mocinhas cuja aproximação evitei por pré-julgamentos imbecis acerca de suas roupas muito adequadas à moda. Moças que poderiam, sim, ser patricinhas nojentas, mas poderiam também ser pessoas legais e interessantes, com quem valeria a pena se relacionar.
Mas eu não paguei para ver.
O mundo moderno não comporta mais o preconceito escrachado. Alguns chamam de evolução social, mas os nossos preconceitos são, agora, sutis. Mascarados por discursos de igualdade que são modinha e nos rendem muitos likes.
Mas continuamos a julgar as pessoas pelas músicas que ouvem, pelas roupas que usam, pelo lugar de onde vieram e até pelo tamanho do pingente que elas usam no pescoço.
Em tempos de orgulho gay e marcha das vadias, eliminar os preconceitos não é “aceitar” um gay no seu grupo de seminários da faculdade. É olhar com respeito para a moça que passa de saia curta e transa com um cara a cada semana, é não achar absurdo que a TV mostre um beijo gay em horário nobre.
Os preconceitos sutis são perigosos porque são quase imperceptíveis: os alimentamos sem sequer notá-los. E eles crescem, nocivos, e destroem esse ideal de igualdade e respeito que fazem de mim e de você essas pessoas nobres que pensamos, erroneamente, ser.
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