InícioEntretenimentoQuem foi a autora do primeiro romance da história, Murasaki Shikibu?

Quem foi a autora do primeiro romance da história, Murasaki Shikibu?

Desde os tempos das primeiras civilizações, a narração de histórias ocupa o centro da comunicação. De pinturas rupestres e hieróglifos até a tradição oral, e da tradição oral até a televisão, o cinema, os vídeos virais e as Twitter threads, a narração é uma forma de compreender o mundo e conectar-se com aqueles ao nosso redor. Mesmo que vivam vidas completamente diferentes da nossa. Os romances são um dos métodos mais acessíveis e populares de contar histórias. Eles surgiram no século 11, quando o romance mais antigo do mundo veio de uma fonte bastante improvável: como muitas das maiores inovações do mundo, veio de uma mulher. Ela foi a autora japonesa Murasaki Shikibu.

Quem foi Murasaki Shikibu?

Seria perdoável não conhecer o nome de Lady Murasaki, já que mesmo Murasaki é um pseudônimo. Alguns diriam que ela tinha a narração de histórias no sangue. Nascida na cidade hoje conhecida como Kyoto, em 973 d.C., ela era filha de um estudioso e neta de um famoso poeta. Tendo recebido uma educação refinada, se familiarizou cedo com a poesia e a literatura japonesa e chinesa.

Durante sua vida, o Japão começava a se tornar mais isolado da China, e o país começou a moldar uma identidade cultural nacional mais forte como resultado. Os homens japoneses continuaram a escrever formalmente em chinês, como mandava a tradição, mas era incomum uma mulher fazer isso. Murasaki, no entanto, era fluente na língua, e a sua exposição às artes de ambos os países a transformou em um prodígio literário. Até seu próprio pai ficou chocado ao descobrir o quão talentosa ela era. Ela registrou a reação dele em seu diário:

‘Que azar’, disse papai. ‘Que pena que ela não nasceu homem’.

As tendências criativas de Murasaki se desenvolveram desde cedo: ela se aventurou pela poesia em sua juventude e usou essa forma de arte para registrar algumas de suas vivências e experiências. Seus poemas proporcionaram aos futuros estudiosos um vislumbre dos detalhes de seu mundo.

O casamento e a vida na corte

Durante sua juventude, teve muito pouco contato com homens, à exceção de seu pai. Era típico para mulheres nobres de seu status casarem-se ao atingir a puberdade, mas Murasaki permaneceu na casa de seu pai até seus vinte e poucos anos, ou talvez até o início dos trinta.

Em 996, seu pai foi nomeado governador da Província de Echizen, e a filha decidiu acompanhá-lo. Dois anos depois, voltou para sua cidade natal para casar-se com Fujiwara no Nobutaka, um primo de segundo grau que era vinte anos mais velho do que ela. Quando se casaram, Nobutaka tinha um número desconhecido de outras esposas, o que era comum entre os homens nobres da época. Murasaki lhe deu uma filha, e dois anos depois perdeu o marido em meio a uma epidemia de cólera.

Eles realmente me veem como algo sem brilho, eu me pergunto? Eu sou o que sou.

Muitos esperavam que Murasaki se casasse novamente, mas ela desafiou as expectativas. Em vez de buscar novas núpcias, começou a trabalhar em O Conto de Genji, uma história que viria a ser considerada a maior obra de toda a literatura japonesa, bem como o primeiro romance já escrito no mundo. O Conto de Genji acompanha a vida de um príncipe imperial na forma de uma saga romântica ampla e intrincada. Era bastante diferente de tudo o que qualquer pessoa já havia escrito antes.

O primeiro romance da história

O Conto de Genji é, basicamente, uma história cronológica dos eventos que cercam o seu protagonista fictício, o belo filho ilegítimo do imperador do Japão. Ademais, é um livro que oferece um profundo insight psicológico sobre a vida dos personagens, algo que se acredita nunca ter sido feito antes. Hoje, a maioria dos romances não estaria completa sem um vislumbre do interior dos personagens, mas no século 11 isso não era comum. É mais do que apenas uma história: é uma exploração do que significa ser humano.

As mulheres também ocupam um papel central na narrativa. Embora Genji seja claramente do sexo masculino, grande parte da história gira em torno de suas inúmeras amantes. As mulheres apresentadas no romance são completamente multifacetadas e subvertem os papéis típicos que homens e mulheres desempenhavam na cultura da corte da época. As mulheres, em desvantagem, sabiam manipular o sistema para ganhar controle.

Na época em que o livro foi escrito, as nobres japonesas estavam constantemente protegidas da vista pública por cortinas ou biombos, escondidas de outros homens que não fossem seus pais e maridos. Em O Conto de Genji, elas removem esses biombos, ainda que metaforicamente, comunicando-se com os homens por meio da poesia escrita, passada para frente com a ajuda de mensageiros. A partir daí, o romance explora como as relações entre homens e mulheres alteram o curso de suas vidas. Por meio de O Conto de Genji, Murasaki ofereceu um novo olhar sobre a vida das mulheres de sua posição social.

O molde de sua experiência pessoal

Junto à sua análise sobre as mulheres, O Conto de Genji é também admirado por sua retratação da cultura histórica japonesa. Murasaki detalhou tudo, desde as roupas, estilos e entretenimentos do Período Heian Inicial até seu código moral e belezas da natureza.

Embora a história siga tramas complexas, sua visão da alta sociedade veio diretamente de suas experiências com a nobreza. Isso porque em 1005 Murasaki recebeu um olhar ainda mais próximo da classe alta quando sua linhagem como escritora a levou a ser convidada para trabalhar na própria Corte Imperial. Ela serviu como dama de companhia da ainda adolescente Imperatriz Shōshi. Não está claro por que exatamente Murasaki foi escolhida para este papel específico, mas alguns acreditam que a jovem imperatriz gostava de se cercar de mulheres de talento literário – suas outras duas damas de companhia eram as reverenciadas poetisas Akazome Emon e Izumi Shikibu.

E, sempre contrariando as expectativas, Murasaki aproveitou cada oportunidade que pôde para ensinar secretamente a Imperatriz Shōshi o chinês.

O fim de sua vida

Vivendo agora no cenário de seu romance, Murasaki continuou a escrever e frequentemente adicionava cenas de sua vida na corte em seus outros trabalhos escritos. Ao contrário da história romântica e abrangente de Genji, obras como O Diário de Lady Murasaki, uma coleção de vinhetas escritas pela autora entre 1008 e 1010, são realistas ao extremo.

Durante seu período na Corte Imperial, Murasaki foi surpreendentemente impopular, e frequentemente encontrava-se como objeto de fofocas e alienação. Em O Diário de Lady Murasaki, ela expressa sua indignação com sua reputação:

‘Bem, não esperávamos por isso’, dizem todos. ‘Ninguém gostava dela. Todos diziam que era tão pretensiosa e reservada, difícil de abordar, arrogante, desdenhosa, irritadiça. Mas, quando a encontramos, ela é mansa, uma pessoa completamente diferente’ Que embaraço! Será que realmente me veem como alguém tedioso?  Enfim, eu sou o que sou.

Tanto a morte de seu marido quanto sua reputação desfavorável significaram que Murasaki não era estranha à solidão. Na Corte Imperial, ela se tornou reclusa e eventualmente se aposentou para dedicar o resto de sua vida à literatura e ao budismo.

Seu ano de morte é desconhecido, mas alguns acreditam que tenha sido em 1014, aos 41 anos. Apesar da escassez de conexões significativas em sua própria vida, seu trabalho serviu para conectar os leitores da era com um olhar muito poderoso e perspicaz sobre as relações que nos tornam humanos. Sua abordagem genial para a narrativa, sem dúvida, abriu novos mundos para os escritores que vieram após ela, tornando-a talvez uma das mais influentes contribuidoras para a literatura que já viveu. E é certamente surpreendente que não apenas o primeiro romance do mundo fosse um romance (e uma obra-prima literária de romance, nesse caso), mas que fosse escrito por uma mulher sem nome com uma voz extraordinária.

O texto original foi publicado na revista All About History.

Camila Nogueira Nardelli
Camila Nogueira Nardelli
Leitora ávida, aficcionada por chai latte e por gatos, a socióloga Camila escreve sobre desenvolvimento pessoal aqui no El Hombre.