O texto “Bobby Fischer: um homem e sua paixão” foi publicado originalmente em setembro/2012; veja aqui mais artigos da série “Clássicos ELH”, uma coletânea de textos atemporais em comemoração ao aniversário de 10 anos do El Hombre.
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Olha. O título acima é o de um filme que acho que só eu vi. Quer dizer. Um Homem e sua Paixão. Engraçado. Não é sobre o filme que eu sentei aqui para escrever. Mas já que dei aquele título. Mastroianni, Monica Vitti. Um casal como tantos outros. Moram numa casa nos subúrbios. O personagem de Mastroianni um dia está andando pelo centro quando alguma coisa — o destino? — o atrai a um leilão. Ele levanta ao acaso a mão teimosamente na disputa de algo. Era uma câmara.
A câmara se torna sua paixão. Ele filma tudo, e o resto vai perdendo importância, incluído aí seu relacionamento — oh Monica, você devia ter sido preservada para todo o sempre com a beleza italianamente assombrosa daqueles dias em que era rainha sobre as rainhas. Uma hora ele parece interessar-se novamente por ela, e se abraçam, e se beijam, e ele a leva para a cama. Ela suspira aliviada. Parecia ter recuperado o marido que se fora rumo a um mundo apenas dele, e ela soube que o perdera para sempre quando percebe, depois do sexo, a presença da câmara de filmar. Ele interpretara um papel. Ele estava excitado não pela mulher, e que mulher, mas pela filmagem.
A cena final, ah, a cena final. Vontade de contá-la, mas talvez alguém queira ver o filme, e então paro por aqui. Digo apenas: entra em qualquer lista curta dos melhores finais de cinema.
Eu queria, na verdade, falar de um herói da minha vida e de muitas outras pessoas, ou anti-herói, sobre cuja obra o tempo não haverá de fazer efeito. Bobby Fischer, o enxadrista americano. Lembro a página de obituários da Economist, e não há como não se emocionar com a foto preto e branco do jovem Fischer. Jovem ainda, paletó e gravata, queixo apoiado na mão esquerda, abotoaduras elegantes, os olhos postos com devoção concentrada no maior amor de sua vida: o tabuleiro de xadrez. Ele nunca casou, ele nunca fez nada além de jogar xadrez e, progressivamente, perder o juízo. Ah, mas como ele jogava, como ele jogava.
Bobby Fischer acabou com um duradouro reinado dos russos no xadrez em 1972, numa histórica disputa na Islândia. Os líderes soviéticos usavam a hegemonia no xadrez para apregoar a superioridade do comunismo. Ao bater Boris Spassky, o campeão mundial, Fischer se tornou um herói da Guerra Fria. (Não vou escrever sobre a Guerra Fria, simplesmente me recuso. Preguiça. Wikipedia para maiores detalhes.) Fischer de alguma forma antecipou no tabuleiro o fim do comunismo.
Spassky era assessorado, nos intervalos das partidas pelo título mundial, por 35 Grão-Mestres de xadrez. Fischer tinha um caderno de anotações, e ele próprio, e sua mente prodigiosa. E venceu. Fischer sonhava fazer uma casa na forma de uma jogada clássica de xadrez, o roque. Não fez. Ele tinha sido o principal trunfo de si próprio na Islândia, e depois se converteu também em seu pior inimigo. Via conspiradores por toda parte. Tinha sempre a seu lado pílulas para neutralizar envenenamento em sua comida.
Morreu solitário como sempre foi, Bobby Fischer, um gênio, um gigante, um herói improvável, o campeão eterno de todos nós os desajustados, e foi com um arrepio que eu soube que o local escolhido por ele para morrer foi a remota Islândia, onde vivera seus dias de rei e guerreiro, onde fora capaz de destruir, sozinho, apoiado apenas em seu extraordinário talento e em sua vontade inquebrável, um exército de Grão-Mestres soviéticos ávidos por liquidar aquele americano petulante. A Islândia era acolhedora para ele, como era acolhedor o clube de xadrez novaiorquino em que, garoto, estudava longamente o jogo quando devia estar na escola.
Joguei xadrez uma época da vida. Cheguei a comprar um livro, estudava, essas coisas. Defendi minha escola num campeonato. Mas as partidas que realmente me marcaram foram jogadas com meu tio Julio Spanó, uma das pessoas mais interessantes que conheci na vida. Voava num tecoteco pelos céus de Ribeirão, tomava xarope no gargalo para se animar, tocava piano, rasgava baralho quando perdia e era um anfitrião incomparável. Geralmente ganhava dele, razão suficiente para tio Julio me considerar um prodígio. Tio Julio era casado com tia Zete, irmã mais velha de mamãe, e na casa deles em Ribeirão passei férias que jamais esqueci, embalado pelas piadas contadas por meu tio em sua voz estentórea de Fred Flintstone.
E então me lembro de Fitzgerald, e de seu Gatsby, um dos meus grandes heróis literários. E me vem obsessivamente a sentença final do romance de Fitzgerald, e ei-la, braços remando contra a corrente, rumo ao passado, estamos todos condenados a isso. Jay Gatsby amava Dayse, a traiçoeira Dayse, e enriqueceu apenas para conseguir se reaproximar dela, anos depois, ela já casada. Ele voltou no tempo, ele era apaixonado, ela era calculista, e ninguém dava festas como as de Jay Gatsby, e Dayse se atirou nos braços dele fascinada pela opulência de Gatsby, uma adúltera nada relutante, uma mulher que tinha seu preço como se fosse uma joia, e ela e todos o abandonaram quando as coisas correram mal para ele, exceto o narrador, que grita aquele grito sublime de amizade, admiração e lealdade quando Gatsby se afasta derrotado do local onde conversavam os dois, e este é um grito que tanta gente como eu gostaria de ter gritado para Bobby Fischer: “Ei, Gatsby, você é melhor que todos eles.”
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