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Uma casa em Alfama

Poucos lugares em sua vida fazem você dizer a si próprio depois de deixá-los: tenho que voltar.

No meu caso, o Parreirinha de Alfama é um deles. É  uma casa de fados em Alfama, o bairro de ruas estreitas e ares remotos de Lisboa. O fado do Parreirinha é cantado e tocado intermitentemente no meio das mesas do pequeno salão. As luzes são apagadas e a cantora e os instrumentistas se encaminham para o centro do restaurante.

Uns cinco ou seis fados são tocados. Depois, as luzes são outra vez acesas e os músicos voltam para a frente do Parreirinha, à espera da próxima sessão, dali a uns 20 minutos. Enquanto isso, os fregueses comem, bebem, conversam. Não há microfones e nem amplificadores. As cantoras dramáticas, sempre veteranas, têm um volume de voz poderoso. Os guitarristas, baixos, velhos e caprichosamente arrumados como típicos portugueses pré-modernização, também não necessitam de tomadas para aumentar o som.

Fazia muitos anos que eu não vinha a Lisboa, e não sabia se o Parreirinha ainda existia. Perguntei no balcão do hotel, e a funcionária disse que sim, depois de consultar o Google. Ela me passou o telefone. Em agosto, em Lisboa, melhor fazer reserva. Camila, minha caçula, ligou para o Parreirinha. Fez a reserva. Quando pediu o endereço, ouviu apenas que fica em frente ao Museu do Fado. “Todo mundo conhece o Parreirinha”, avisou, confiante, alguém do restaurante.

O motorista que nos levou era uma exceção, naturalmente.

O nome Parreirinha tem um efeito duplamente nostálgico em mim. Não é apenas a casa de fados de Lisboa. Em São Paulo, no começo dos anos 80, quando eu iniciava minha carreira, o Parreirinha era o restaurante em que os jornalistas da Veja iam saciar sua fome e sua sede monumentais depois das madrugadas de fechamento.

Fizemos bem em reservar. Por volta das dez da noite, já havia gente esperando. É preciso ter paciência na espera. No Parreirinha, você pode ficar algumas horas, depois de comer. É bom tomar um vinho devagar ouvindo o fado que vai e vem como as luzes do salão. Fico feliz ao ver a vitalidade resistente da casa: é como encontrar um velho amigo e notar que ele está cheio de vida.

Meu fado preferido, previsivelmente, é Uma Casa Portuguesa. Gosto particularmente do verso que diz que na “alegria na pobreza” está a “grande riqueza” do português. Filosoficamente, são palavras de total sabedoria. Camila parece um pouco assustada com a possibilidade de que o pai cante alto, com entusiasmo desafinado, Uma Casa Portuguesa ali no Parreirinha.

Quando você é adolescente como ela, os pais podem ser irritantes ao não se comportar como deveriam. Ameaço que vou cantar. Afinal rimos juntos. Camila e eu temos um humor parecidíssimo, o que faz que riamos quase todo o tempo. A cabeleira vermelha de Camila é notada mesmo na luz mortiça do Parreirinha: é assim desde que ela era um bebê ruivo de cabelinho espetado. Camila parece não perceber que todos a olham, e espero que seja sempre assim.

Pago a conta de 70 euros e vamos embora. Lembramos, a caminho de um lugar em que fosse fácil um táxi, de alguns bons momentos da noite. E cantamos juntos um trecho de Uma Casa Portuguesa. Tenho a impressão de que também Camila vai querer um dia voltar ao Parreirinha de Alfama.

Paulo Nogueira
Paulo Nogueira
Paulo Nogueira (1956-2017) é o pai de Pedro Nogueira, editor-chefe do El Hombre. "Ele foi meu herói", diz Pedro. "E continua sendo." Ao longo da carreira, dirigiu várias revistas da Abril e da Globo. Também escreveu artigos para o El Hombre que, frequentemente, reeditamos e republicamos no site.