Somos seres absolutamente inteligentes. Somos tão inteligentes que enganamos a nós mesmos e, muitas vezes, demoramos longo tempo para percebermo-nos disso.
Como criaturas sociáveis, acabamos criando uma necessidade interna de nos sentir aceitos pelo outro e vivemos conforme os ideais que adotamos (geralmente de acordo com os ideais do grupo cultural que estamos inseridos), procurando moldar-nos a eles para nos sentir bem.
E um ideal comum, se não à todos, à quase todos, é o do bom moço, aquela pessoa dotada de bons sentimentos.
Uma pessoa de bom coração gera simpatia. Nada mais natural. Sorriso, educação, polidez, compaixão são sentimentos e atitudes acolhidos pela sociedade. Em contrapartida, movimentos agressivos, raivosos, que expressam um teor negativo geralmente não são bem vistos.
Então a necessidade de adaptação faz-nos querer, ou melhor, desejar encontrar em nós sentimentos elevados. Todo sentimento que não for desse gênero temos uma grande tendência em ignorar.
Eu egoísta? Eu maldoso? Eu invejoso? Imagina!
“É extremamente fácil enganar a si mesmo, pois o homem geralmente acredita no que deseja.”
Essa frase atribuída a Demóstene, político e orador grego de séculos antes de Cristo, considerado por muitos como o maior orador da história, corrobora a tese.
Só tem um detalhe nisso tudo: acreditar que não há trevas em nós não faz com que não haja trevas se houver trevas.
Sacou?
E, me diga, qual coração pode ousar dizer-se sem trevas?
Por isso, deveríamos dar luz à raiva que pulsa em nossos peitos. Repimi-la como se já tivessemos superado o sentimento não vai nos servir de nada. É um processo de auto-rejeição.
Se ela surgir, já está ali e não há nada imediato que vá tirá-la de lá. Nós somos o que somos. Aceitemos que doi menos, como diria o povo.
E, quer saber de uma coisa? Está tudo certo. Nesse ponto somos todos iguais. Não há ser humano imune a esse tipo de sentimento. Há os que disfarçam melhor e os que disfarçam pior — mas todos os vivenciam.
Precisamos aprender a nos relacionar conosco mesmo num nível mais profundo. E para isso é necessário meter a mão no lodo sem nojinho. Debruçarmo-nos sobre o lamaçal dos nossos sentimentos.
Isso, contudo, não nos habilita a sair dando porrada em todo mundo. Por sentir a raiva não quero dizer expressá-la no outro. É simplesmente não jogá-la para debaixo do tapete, fingindo não senti-la.
Surgiu ódio, inveja, ciúme, seja o que for, permita-se viver o sentimento, ele está te dizendo um monte de coisa. Somente dando ouvido somos capazes de superá-los. Por isso a lição do “conhece-te a ti mesmo”, de Sócrates, é eterna.
Se precisar, vá para o seu quarto, cole a boca no travesseiro e grite, arrume um João Bobo para dar porrada, chore, deixe que seu corpo traduza a emoção. Não é de hoje que a humanidade reconhece o valor da catarse.
Confome define o dicionário Michaelis, catarse é um “método de purificação mental que
consiste em evocar à consciência os estados afetivos recalcados, para aliviar o doente dos desarranjos físicos e mentais oriundos do recalcamento”. Aqui apenas peço permissão para poder levar o contexto a um nível cotidiano, além do psiquiátrico.
Acabamos de ter um caso que ilustra bem esse cenário: Messi.
A frieza do craque foi quebrada nesse domingo com a derrota de sua seleção argentina para o Chile no final da Copa América Centenário. O jogador chorou, ficou desolado, mostrou algo que muitos acreditavam que ele nem tinha: sentimentos.
Sabe-se lá há quanto tempo essas emoções estavam sufocadas em sua garganta. Afinal, ser o maior do mundo exige uma postura mais ou menos ideal. Mas, no fundo, não queremos postura, queremos humanidade. E o mundo vibrou com a humanidade de Messi.
Não que a família da sua namorada vai vibrar com um ataque de raiva seu na hora do jantar — mas ter consciência de que essa vontade existe e está lá pulsando já pode ser um grande alívio.
Privacidade e cookies: Este site utiliza cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com seu uso.
Saiba Mais